Uma alegoria de valor universal
O Livro das Bestas, um dos melhores textos de toda a prosa catalã medieval, foi escrito por Raimundo Lúlio antes de 1286. Posteriormente, ele o inseriu no Livro das Maravilhas do Mundo, que narra as aventuras de um andarilho, Félix, cujo ofício era “maravilhar-se com as maravilhas do mundo”. O Livro das Bestas constitui sua sétima parte.
Inspirando-se em fontes arábicas, mas sem excluir alguma influência francesa, Lúlio construiu uma aguda crítica da sociedade humana, utilizando-se dos animais como símbolos. O leitor tem em mãos uma novela das mais ambiciosas, a par de atualíssima. Suas páginas não trazem um posicionamento doutrinal direto sobre o modo mais correto de se organizar a sociedade humana, nem qualquer moral sistematizada. Entretanto, à medida que o leitor se introduz no entrelaçado das fábulas que integram a narrativa, torna-se evidente que Lúlio trata nessas linhas de uma realidade bem mais profunda, situada nos bastidores da vida social. A inteligência humana emerge com toda a sua força.
Lúlio foi um realista. Somente alguém que, como ele, tenha descido, um a um, todos os degraus da miséria humana, será capaz de falar do homem com tanta verdade. “A pior besta que existe neste mundo, vejo que é o homem, pois nenhuma outra mata-se a si própria; nem vejo, Senhor, nenhuma outra espécie que como o homem mate tantas outras de sua mesma espécie, nem mate, de maneiras tão diferentes, tantos animais, pássaros, e peixes como ele. Senhor, Senhor, que outra besta é tão ruim como o homem?”
Servindo-se precisamente do simbolismo das bestas, Lúlio fará desfilar diante do leitor a intriga, a ideologia, o adultério, a mentira, enfim todas as mazelas que amargam a sociedade dos homens quando estes, incoerentes com a sua condição racional, deixam-se subjugar pela sensibilidade cega.
Talvez a intenção de Lúlio fosse escrever um manual para os príncipes, que resumisse as qualidades que o governante deve possuir e as precauções que deve tomar para exercer com sucesso o seu poder, pois o livro termina com as seguintes palavras: “Termina aqui o Livro das Bestas que Félix levou ao rei para que ele, olhando o que fazem os animais, visse como deve reinar e guardar-se dos maus conselhos e dos homens falsos.” Entretanto, saiu de sua pena uma alegoria inteligente e de valor universal sobre a sociedade humana.
Ficção