Carlozandre 21/01/2010
Sonhos Partidos
Frank e April são jovens, moram em uma casa grande e confortável no subúrbio, mantida com o dinheiro ganho pelo marido, que trabalha em uma empresa de maquinaria pesada — emprego que odeia profundamente. Eles têm dois filhos saudáveis, estão em boa situação financeira e são queridos pelos vizinhos (um casal de amigos mais ou menos da mesma idade de ambos e a agente imobiliária mexeriqueira de meia-idade que intermediou o aluguel do imóvel). Uma bela rotina classe média na qual esse casal inteligente e promissor sente-se tão feliz quanto uma dupla de afogados.
Frank e April Wheeler são os protagonistas de Foi Apenas um Sonho(Objetiva/Alfaguara, 306 páginas, tradução de José Roberto O`Shea), romance de estreia do escritor americano Richard Yates (1926 — 1992), respeitado artesão da forma romanesca mas um nome pouco conhecido do grande público - que agora está tomando conhecimento de sua obra graças à adaptação cinematográfica do romance por Sam Mendes, com o “Casal Titanic” Leonardo DiCaprio e Kate Winslet como Frank e April, respectivamente.
Foi Apenas um Sonho foi incluído em listas como a dos cem livros do século do The New York Times e dos mil livros fundamentais do inglês The Guardian. Sua obra está ganhando edição pelo selo Alfaguara da Objetiva, que deve publicar em português ao longo do ano outras de suas obras.Em uma prova da subordinação do mercado editorial de hoje à indústria do cinema, o livro não apenas reproduz o cartaz (o que altera até mesmo o padrão gráfico do selo) como adota o título em português que a distribuidora escolheu para o filme — o que põe a perder a sutileza do original, Revolutionary Road, “Rua Revolucionária” ou “Rua da Revolução”, como preferiu o tradutor. April e Frank estão em uma encruzilhada de suas vidas e buscando sua própria revolução pessoal. Ela afunda gradativamente na rotina de dona-de-casa (quando se conheceram, sonhava em ser atriz). Ele, que lutou na Europa durante a II Guerra, cujos talentos são difusos mas que despertam nela e em outras pessoas aprovação e elogios que atestam um suposto brilhantismo, se vê estagnado em um emprego no departamento de divulgação da mesma empresa na qual seu pai sempre trabalhou. Um casal alçado ao horizonte máximo esperado para sua idade no padrão americano da vida burguesa, e afundando no desespero de sua vida pacata.
A prosa de Yates é elegante, sóbria, mas tensionada por linhas de força e poesia mantidas sob controle — quase como um espelho formal da vida dos Wheeler, que sorriem educadamente para os vizinhos, que se encontram uma ou duas noites por semana com um casal de amigos que, em sua mediocridade alarmante, são um espelho incômodo da apatia do casal. A portas fechadas, contudo, as angústias represadas explodem em brigas, ofensas, manifestações de violência física. Para tentar salvar a sanidade e o casamento de ambos, April elabora um plano comovente em sua ingenuidade: a família toda se mudar para a Europa, onde ela sustentaria a casa trabalhando como secretária ou estenógrafa para organismos internacionais e ele poderia se dedicar a descobrir sua verdadeira vocação. O que April não sabe é que a proposta desperta em Frank o terror de não ter vocação alguma.
Kurt Vonnegut comparou a ficção de Yates à de Fitzgerald, mas há uma sutil diferença. Fitzgerald escrevia baseado na vida que havia inventado para si e para Zelda, bem como também fazia seu amigo e rival Hemingway. Havia uma noção romântica nos livros de Fitzgerald, uma grandeza heróica ao retratar as derrotas monumentais de personagens gigantescos e que, apesar de ostentarem beleza, poder e riqueza, fracassavam em seus sonhos, sonhos que muitas vezes eram a busca por uma certa inocência antiga perdida e jamais reencontrada. Yates e suas criaturas são da geração seguinte, a que levou ao paroxismo as palavras de Henry Miller, para quem os Estados Unidos eram um “pesadelo de ar-condicionado”.
Não há a grandeza épica ou a tragédia melancólica de um Grande Gatsby nas vidas do casal Wheeler, só o peso opressor de uma geração marcada pela experiência da II Guerra (que ensinou o valor da vida), confrontada com um presente doméstico e consumista no qual a felicidade parece uma obrigação a ser cumprida. Se hoje o tema não é mais tão novo, exaurido por romances que abordaram o mesmo assunto e por centenas de filmes que repisam a dolorosa apatia classe média sob a qual se esconde um grito de desespero, é bom lembrar que o livro é de 1961 — o que prova que Yates soube diagnosticar a apatia da vida burguesa americana no momento em que ela estava se alastrando. Não é coincidência que na mesma época tenha saído o romance que tornou célebre o recentemente falecido John Updike, Coelho Corre, que aborda, com mais acidez, menos melancolia e mais sexo, o mesmo tema: Harry “Coelho” Angstrom é um ex-atleta universitário que sofre para se ajustar às resposabilidades esperadas da vida conjugal: filhos, esposa, casa própria e emprego tedioso. Escritores maiúsculos ambos, Yates e Updike estavam em sintonia com as sutis vibrações de seu tempo, um tempo em que o sonho americano está padronizado e disponível nas prateleiras do supermercado do cotidiano.
E que não são aceitas devoluções.