Jacque Spotto 09/05/2021
INSÔNIA - Graciliano Ramos
Iniciei a leitura de Insônia sem saber nada sobre o livro, inclusive, descobri ser um livro de contos no
momento da leitura e o título do livro leva o nome do primeiro conto. Com o total de 14 histórias, que às vezes tem uma ligação com outras histórias do livro, todas as narrativas trazem uma dicotomia que
permeia por todas as narrativas, mesmo com situações diferentes os personagens sempre se veem em
um conflito por dois caminhos, situações e até mesmo personalidades.
Tenho consciência de que se deve separar a vida do escritor da obra, mas não há como não mencionar
o contexto histórico efervescente em que Graciliano se encontrava, antes mesmo da criação de suas
obras até suas publicações. E a influência explícita que ela transparece, inclusive no livro Insônia. Todos
os contos que compõem o livro foram publicados e escritos, em sua maioria, em datas diferentes em
revistas da época a partir de 1937. Somente em 1945 que esses contos foram integrados ao livro
intitulado "Insônia''.
Graciliano nasceu em 1892, em meio a um governo oligárquico, passou pela Revolução de 30, pela
Revolução Constitucionalista de 32 e a Ditadura do Estado Novo, presenciou essa transição política,
como descreveu Letícia Malard no posfácio desta edição. E neste contexto, surgem os contos que
sempre traz um personagem reflexivo em seu estado de ser, das ambivalências cotidianas e da própria
existência, o que leva a um paralelo ao que se vivia na época de Graciliano, a mudança da forma de
Governo e consequentemente as mudanças na forma de vida e de pensamentos de uma sociedade.
Já no primeiro conto, inicia-se com a pergunta: "Sim ou não?" aquela resposta que não terá um
meio-termo, não há algo variável, apenas uma escolha, um lado ou outro, mas Graciliano não te dá uma
resposta da dúvida que assombra o personagem, e sim, metáforas, pensamentos angustiados em que
ele não consegue dormir pois está sendo torturado pela voz interior em sua cabeça e pelos sinais que
metamorfoseia-se no tique-taque do relógio e nos mínimos sons noturnos que atormentam seu sono.
Assim como no primeiro conto, todos subsequentes, há dualidades, escolhas a serem feitas, e caso
seja, será a correta? No caso do conto "Dois dedos", o Dr. Silveira vai ao Gabinete de seu amigo de
infância, hoje Governador:
"Um deles estudara Direito, entrara em combinações, trepara, saíra
governador; o outro, mais curto, era médico de arrabalde, com diminuta clientela e sem automóvel". (p.
92 - Dois dedos)
A partir do momento em que o médico chega ao local de trabalho do amigo político, ele se vê intimidado
pela magnitude do local, em não conseguir chegar a um patamar igualitário, ao qual se gabava a
esposa de serem amigos íntimos, fazendo até o gesto de esfregar um dedo um no outro. E mesmo
assim, seus caminhos em torno de 20 anos tomaram rumos diferentes, duas vias desiguais.
Outro tema recorrente nos contos são as visões nebulosas e sombras, algo que está em um campo de
desfoque. Podemos remeter como uma metáfora ao que não se sabe ao certo o que virá ou o que se
pode confiar, geralmente antecede momentos de vulnerabilidade do personagem.
"O nevoeiro embranquece novamente a sala, as paredes somem-se, o rosto da mulher mexe-se numa
sombra leitosa" (p. 48 - Paulo)
"Tinha as mãos úmidas e as orelhas pegando fogo, a vista escurecia, um nevoeiro ocultava as figuras".
(p. 107 - A Testemunha)
Outra similaridade entre os personagens dos contos é que eles se sentem incomodados, tanto com as
pessoas à sua volta, ao local em que estão inseridos e que não se acham pertencentes ali, como
também por situações em que se encontram, por se sentir deslocados em uma sociedade ou grupo de
pessoas. Cada um se vê quase como um estrangeiro, o que me lembrou bastante do personagem
Meursault do livro "O Estrangeiro" de Camus, esse deslocamento do ser onde está inserido, um
sentimento de não-pertencimento.
Levando em conta toda a vida de Graciliano, todas as indas e vindas, mudanças de cidades, prisão por
ser considerado um subversivo comunista, morte de familiares pela peste bubônica e o envolvimento da
oposição ao Governo. Tudo isso transparece em sua obra, sua vivência enriquece sua literatura de uma
maneira única, trazer personagens com seus medos, angústias, dúvidas e arrependimentos, e ao
mesmo tempo esses personagens se empenham, em fazer parte, algo natural do ser humano, a busca
constante de pertencimento.
Como o próprio personagem do conto Insônia diz:
"Amanhã comportar-me-ei direito, amarrarei uma gravata ao pescoço, percorrerei as ruas como um
bicho doméstico, um cidadão comum, arrastado para aqui, para acolá, dizendo frases convenientes.
Feliz, completamente feliz". (p. 14 - Insônia)
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