Toni 10/07/2021
Leitura 41 de 2021
A boneca de Kokoschka [2010]
Afonso Cruz (Portugal, 1971-)
Dublinense, 2021, 288 p.
Espalhadas pelas bocas das muitas personagens deste romance caleidoscópico encontram-se frases lapidares que definem o universo ficcional de A boneca de Kokoschka: “As relações com os outros é que nos criam a nós”, “Forçamos o mundo a ser como acreditamos que ele é e nem percebemos que passamos a vida a mentir-nos”, “Não existe mentira na literatura, na ficção, e, digo-lhe mais, não existe verdade na vida real”, “A nossa vida depende da leveza que damos a nosso peso, e vice-versa”, “Um ângulo, é disso que o mundo é feito, de ângulos sobrepostos”.
Leveza/peso, totalidade/fragmento, verdade/mentira, ficção/realidade, eu/outro: contrário ao que se poderia imaginar, neste universo criado por Afonso Cruz os binômios acima não são opostos, mas perspectivas complementares a partir das quais uma história é capaz de gerar inúmeras outras. Assim, as muitas tramas que se cruzam nesta Europa devastada pela Segunda Guerra alimentam não somente umas às outras na feitura de um tecido humano de narrativas infinitas, mas são também um lembrete sempre bem-vindo de que “o tempo não é uma seta do passado para o futuro, o tempo tem muitas dimensões, tal como o espaço. Anda para a frente, anda para trás, mas também vai para os lados…”
Marcadas por obsessões, buscas, tragédias e coincidências, as personagens de A boneca de Kokoschka são “seres humanos pisados por inúmeras perspectivas, avassaladoras” e expressam diferentes formas de elaboração da experiência de um trauma coletivo como o da guerra. Elas nos lembram o tempo todo (às vezes inadvertidamente, às vezes não) que “a existência é feita de testemunhos. Sem isso, não há nada. O ‘outro’ é quem faz com que nós existamos”. Destarte, o próprio romance se desdobra e revela outra obra com o mesmo título dentro de si, abismo metaficcional que, semelhante à vida de suas personagens, dá sentido e também faz existir o livro que temos em mãos.
Como outras obras do escritor, A boneca de Kokoschka é um tributo à linguagem e à elaboração ficcional que criam formas de ser e estar no mundo.
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