Jacqueline 27/07/2014
Todo mundo tem uma história de amor
Basicamente um livro que fala sobre amor, essa eterna busca (ainda que de amores nem tão convencionais). Os contos são povoados por personagens inusitados: uma corcunda, que se relaciona com estátuas e se enamora de um velho, cardíaco, sustentado pela mulher, que aluga sapatos; um órfão, cheio de ausências, criado pelo tio, que conhece o primeiro amor; a mulher que foi primeiro viúva e depois esposa; um vendedor de pássaros (“que não tinha sequer o abrigo de um nome”); um empregado negro, que no confessionário revela como traiu a confiança da patroa, uma Princesa Russa, que abandou seu amor na Rússia e sofre com o marido que a subjuga; um pescador que fica cego ao oferecer seu olhos como isca e que não consegue mais prover o sustento da família; uma linda moça que se apaixona por um seminarista; um forasteiro que desperta os temores de uma comunidade (sempre a dificuldade de lidar com o diferente); um barbeiro que já atendeu o Sidney Poitier; um colono, pai de um casal de filhos, que os proíbe de ir para Paralém das montanhas).
Três contos merecem destaque (não que os outros não sejam bons):
A lenda da noiva e do forasteiro
Na superfície, outro conto sobre amores. Em outras camadas, nos deparamos com metáforas várias e histórias arquetípicas: a mulher oferecida ao estrangeiro para salvar a cidade, a escolha entre a tradição e a ruptura, o conhecido e o novo, o previsível e controlado X o esperado e fora de controle. Os quase últimos jovens de uma aldeia, noivos, deveriam dar continuidade a tribo. Um estrangeiro que chega e desperta as mais tenebrosas fantasias ameaçadoras. A moça que parte em sacrifício para salvar a tribo, por sugestão do sábio ancião, no melhor estilo Geni. Sua demora faz com que o noivo parta para resgatá-la. Ele mata o forasteiro e encontra a noiva chorosa porque dele havia se enamorado. O falecido tinha como missão proteger um lugar, garantindo que nele a solidão pudesse estar, combatendo assim o tempo (como não se apaixonar?). Ao final, o jovem é colocado diante da decisão de ganhar o mundo com ela ou retornar à aldeia sozinho.
Rosalinda, a nenhuma (ou o caso da mulher que primeiro foi viúva e só
depois esposa)
Um dos melhores contos do livro, conta a história de Rosalinda, “que não era nem Rosa nem linda”, como fazia questão de lhe dizer o marido, que pode enfim se tornar esposa quando seu cônjuge, estafermo e bêbado, parte dessa. A felicidade se sentir não mais um numeral ("uma" das), mas de ser finalmente coloca no seu lugar (definido) de oficialidade – "A" mulher - é ameaçada quando vê outra mulher chorando no túmulo do falecido em uma de suas visitas diárias ao cemitério.
De “uma”, ela passa a “a” e daí para “nenhuma”, como expresso no título do conto, é um pulo.
O ex-futuro padre e sua pré-viúva
Uma linda jovem se apaixona por Benjamin, um seminarista convicto, e faz de tudo para tê-lo. No melhor estilo “o que quer uma mulher?”, que nem Freud consegue responder, Benjamim padece, enredado pela jovem. Um toque de realismo fantástico deixa no ar as veracidades dos fatos e a autoria dos atos.
Para além das tramas dos contos em si, o autor nos brinda com:
- O abuso de prefixos negativos que engrandece o incômodo e a dor
“Ela se condizia sozinha, despovoada.”
“Nessa noite eu desconsegui de dormi. Saí, sentei a insónia no jardim da frente.”
“Desorfanar”
“Desmininava”.
“Vivemos longe de nós, em distante fingimento. Desaparecemo-nos.”
- Personificando e coisificando (e ampliando o efeito poético):
“Um mocho piou, incriminando o porvir.”
“Naquela noite, as horas me percorriam, insones ponteiros. Eu queria só me esquecer-me.”
“Somei dúvidas”.
“Ficou numerando dúvidas.”
“O tamanho daquela verdade não cabia em si.”
- Os contrastes:
“Chiquinha, ainda tão filha, como podia já ser mãe?”
- Os adjetivos inusitados e as regências inventadas:
“Um dia me trouxe uma bota de tropa. Grande, de tamanho sobrado. Olhei aquele calçado solteiro, demorei o pé.”
- E as ideias deslocadas de seus lugares de origem:
“A beleza dessa menina, meu sobrinho, é você que lhe põe.”
“Porque a saudade dos homens é toda no presente, nasce do amor não cumprir, na hora, os seus deveres.”
Mia Couto, sempre vale a pena!