Luan 31/03/2016
Aprendendo com Peter V. Brett a como fazer continuações de série sem perder a qualidade
É regra, e não exceção, que o segundo volume de uma série normalmente caia de qualidade. Especialmente quando o primeiro livro tem ótima avaliação, tanto de público, quando de crítica. O segundo sempre é uma espécie de transição e a história pode se tornar morna. Graças a um enredo bem construído e uma mente brilhante por trás das páginas, isso não aconteceu com Lança do Deserto, segundo livro da série fantástica Ciclo das Trevas, de Peter V. Brett.
Depois que Arlen Fardos, do Riacho de Tibbet, assume sua condição de Protegido, mas não de Salvador, ele passa a ser visto como um grande defensor e a maior esperança para as pessoas, pelo menos na Clareira do Lenhador, ou, agora, Clareira do Salvador. Ele não vive exatamente lá, mas ao se aliar, de certa forma, com Leesha e Rojer, Arlen criou certa raíz no local e, juntos, os três serão responsáveis por uma virada na vida da população que aprenderá a ser forte diante dos demônios que por tanto tempo mataram um sem-número de pessoas por toda Thesa.
Mas, apesar de ainda ser o protagonista, o foco de Lança do Deserto já não é apenas Arlen. Vamos conhecer um pouco mais de Jardir, o amigo krasiano de Arlen, que o "expulsou" do deserto há vários anos. O foco inicial torna-se a vida deste líder e vamos conhecer como foi que ele se tornou tão poderoso, vendo sua infância, adolescência até se tornar quem ele é. E ainda acompanharemos o plano de Jardir, o Shar'Dama Ka, em tentar unir todas as comunidades espalhadas por Thesa a fim de construir um grande exército para a grande guerra final contra os terraítas. Com trama mais política, o livro nos mostra uma série de tentativas de evitar guerras, destruição e a busca por alianças - alguma até surpreendentes.
E foi neste ponto, em que o livro focava em Jardir, que morou o perigo para mim. Achei que seria realmente um leitura enfadonha, lenta, chata e desmotivadora. Não vou mentir: o início realmente foi. Mas conforme a história avançava, não só se tornava prazeroso em ler, como nascia uma empatia pelo "vilão" da história. Conhecendo todas suas razões por se tornar quem se tornou, passamos a entendê-lo melhor e vemos que nem tudo que ele faz é por maldade, mas por crença e fé naquilo que acredita. E aí o livro nos alerta para um grande problema também da atualidade: a cegueira perante a religião. Mas não vou me aprofundar no tema.
Mas é na parte que o livro retorna com sua narrativa sob a perspectiva de Arlen que a leitura volta a ficar animadora e viciante, como poucos livros de 700 páginas conseguem ser. Como também já conhecemos todo o processo que levou Arlen a ser o Protegido e um homem de certa forma amargurado, não prejudica a leitura, ao menos para mim, o fato de a personalidade dele ser difícil. Ele é também inteligente e um verdadeiro salvador que arrisca a si mesmo a um bem maior: matar terraítas e salvar as pessoas. Um protagonista como poucos e que, a não ser por uma reviravolta muito grande, continuará sendo um de meus personagens literários preferidos.
Além dele, continuamos a acompanhar a saga de Leesha como ervanária, mas também como uma grande combatente contra os terraítas, e Rojer, como o encantador de rabecas. E pela força e poder de liderança que os três conquistaram, eles se tornam uma espécia de líderes na Clareira, onde ensinam os demais a lidar com as formas de acabar com os demônios. Uns com mais sorte, outros com menos. Além disso, em determinado momento somos levados de volta para o Riacho de Tibbet, onde, talvez, presenciemos o fato mais interessante do livro. O fato desencadeia também a volta da personagem Renna Curtidor, fazendo com que ganhe espaço na história. Embora todo o desenrolar dos acontecimentos que a envolvam seja muito interessante, não gosto de algumas decisões tomadas pelo autor em relação a ela. Mas aí cabe ao leitor julgar.
Soma-se a isso, um aprofundamento na própria história do Protegido, que começa a sentir efeitos e consequências de suas decisões em se tornar um combatente de igual para igual dos terraítas. Em algum momentos ele já não sabe se é humano ou demônio. Mas podemos ver sua humanidade, sim, em vários momentos. Momentos rápidos com pinceladas de emoção que o autor acertou em cheio, como alguns recontros importantes tanto para Arlen, quanto para nós. Mas, cabe ressaltar, que não vai faltar ação, luta, sangue e momentos mais ousados, todo os ingredientes necessários para uma boa história, afinal, Peter é um mestre e tenho dito. E se em O Protegido o tema era o medo, aqui podemos dizer que o autor quis mostrar que é possível ter coragem, mesmo perante a grandes problemas e desafios.
A edição da DarkSide Books é de outro nível, assim como no volume anterior. Mas a revisão deixou a desejar, uma vez que notei vários erros de digitação. A história, em geral, é excelente, assim como foi O protegido. Com várias páginas a mais, uma história ainda mais profunda e com tramas mais políticas - o que me agrada muito -, A Lança do Deserto é, de fato, um segundo livro que muito autor gostaria de escrever, mas que poucos conseguem. Desde já, muito ansioso por A Guerra Diurna, o terceiro volume da série, que promete ser ainda melhor, e maior - cerca de 800 páginas, a ser lançado no segundo semestre. O livro leva nota máxima, mas não será favoritado pelo início um pouco lento. Mas, no geral, continua sendo minha história literária preferida.