A secura dos ossos

A secura dos ossos 2022




Resenhas - A secura dos ossos


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Krishnamurti 11/07/2023

A secura dos ossos – uma descida aos infernos da existência indígena
“O mais escandaloso dos escândalos é que nos habituamos a eles.” Esta frase lapidar, atribuída à escritora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) ilustra com perfeição a questão dos indígenas, ou povos originários das Américas, sobretudo no Brasil, porque encerra um pensamento de ordem geral, de origem e de valor moral que sempre esteve ligado a tal problemática. Partindo de um princípio classificatório que de saída enquadrou tais populações como bárbaros, selvagens, inumanos, desalmados e etc., desde o descobrimento foram vistos e tratados com toda a desumanidade de que são capazes os ditos “civilizados” europeus. Não importa os tais aldeamentos de catequese do gentio, não importa as tais das missões, a tardia e impotente Funai e etc. e etc., o tratamento foi, e continua sendo, o do extermínio dessas populações de maneira aberta, dissimulada ou via a mais completa indiferença. Sempre foi assim, e continua sendo, repito, na medida em que, incapazes que somos de promover a ocupação sustentável e emancipatória dos imensos territórios nos quais tribos inteiras vivem hoje acuadas, contentamo-nos com supérfluas demarcações de terra e pronto. Que se virem por lá, porque o Estado não dá conta de bater de frente com o tal do agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo, não damos conta de “descer a madeira” nos madeireiros e menos ainda nos ratos do garimpo clandestino e/ou na bandidagem geral que assola o país. Uma lástima que nos envergonha diante do mundo, e vira e mexe, mexe e vira, escancara situações de extermínio sistemático de nações indígenas, quando ocorrem as chacinas do costume que rapidamente caem no mais completo esquecimento.

Uma desses extermínios aconteceu na manhã do dia 23 de julho de 1993, quando um grupo de garimpeiros invadiu uma área onde estavam alguns membros da tribo Yanomami, na região montanhosa de fronteira entre Brasil e Venezuela e executou com requintes de crueldade 16 índios, a maioria mulheres, velhos e crianças. E, certamente pela repercussão que a chacina tomou na mídia mundo a fora, a nossa belíssima Justiça, conseguiu indiciar 23 garimpeiros. Somente em 1996, cinco deles foram julgados e condenados. Mas somente dois foram encarcerados! Colocaram até um nome pomposo no caso como sendo “tentativa de genocídio”, e estamos conversados. Abafa o caso e vida que segue. Assim nosso maravilhoso país.

O romance “A secura dos ossos”, da experiente e premiada escritora Sandra Godinho não tem o objetivo de relatar este fato em si, embora ele se afigure como ápice da trama romanesca. A autora é mais ambiciosa em seus propósitos. Exímia que é em entrelaçar pontas, e desenvolver ficcionalmente sua trama, propõe ao leitor na singular situação das origens da protagonista Tainá Terra, uma reflexão que nos impacta emocionalmente, embora incomode a alguns ainda hoje. Quem é e de onde veio afinal o ser Brasileiro? Qual as nossas verdadeiras origens? Que sangue corre em nossas veias? Muito bem. A trama plasmada em uma prosa poética que flerta com o chamado realismo mágico foi escolha muito apropriada porque permite ao leitor através de elementos mágicos ou fantásticos percebidos como parte da “normalidade” da cosmovisão dos Yanomami, estabelecer dissociações de nossa racionalidade moderna. Permite entender como tais povos ditos selvagens, possuem toda uma complexa e lógica concepção da existência. Uma concepção tão rica em significados existenciais sempre desprezados. Sequer estudados com seriedade.

Sim; vamos à trama. Tainá Terra é uma jovem habitante de um lugarejo encravado na floresta Amazônica ávida por compreender o abandono a que foi relegada pela própria mãe ao ser deixada sob os cuidados do avô paterno. O vilarejo onde vive chama-se Encantado das Almas e nos lembra em certa medida a Macondo de Gabriel Garcia Márquez, em Cem anos de Solidão. Lá coisas estranhas acontecem e terminam em boa medida constituindo grande metáfora da condição de toda a América-latina pós-colonial. Neste vilarejo os moradores, conforme o avanço da idade se por um lado, tornam-se cegos da vista, por outro desenvolvem sensibilidades que não só contornam a falta da visão como ampliam-se as sensibilidades intuitivas.

Assim é Encantado das Almas. Vive-se numa liminaridade inerente ao realismo mágico com todas as suas potencialidades de expressão e entendimento; um mundo no qual convivem da maneira mais anárquica e desordenada possível, garimpeiros, os tais brancos “civilizados” e os Yanomami. Verdadeiro caldeirão humano prestes a explodir.

Tainá Terra resolve seguir as pegadas maternas para saber mais sobre si mesma. Sai neste encalço acompanhada de um certo Tião Rocha, um sujeito aventureiro, sempre pronto e disposto ao desfrute material da existência, até que chegam a um agrupamento Yanomami que guardaria a verdadeira história de sua mãe, que por sua vez, perdeu-se de amores por um certo indígena, pai de Tainá. Aí são aprisionados pelos índios. O tal de Tião Rocha foge e junta-se aos garimpeiros, Tainá acaba seguindo os ensinamentos da cultura indígena. Começam conflitos sérios entre garimpeiros e Yanomamis. Os acontecimentos precipitam-se em tragédias anunciadas. Essas mesmas que até hoje se repetem sem que tenhamos a decência, de solucionar. Sem que possamos diminuir esse fosso, esse abismo social que nos infelicita através dos séculos.

Com efeito, “A secura dos ossos” é obra importantíssima para que possamos compreender tal problemática que se arrasta insolúvel na História brasileira. É livro que deveria ser adotado em nossas escolas de nível médio. Seria valiosa contribuição para a transformação e efetivo desenvolvimento de mentalidades. É isto precisamente que a autora cita a modo de epígrafe no início da obra “A busca às origens é também uma busca de valores.” E isto Sandra Godinho buscou e conseguiu desenvolver de maneira magistral no curso de sua narrativa.

Livro: “A secura dos ossos” – Romance de Sandra Godinho – Editora Patuá – São Paulo/SP, 2022, 180 p. – ISBN: 978-65-5864-459-0
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Alexandre Kovacs / Mundo de K 27/05/2023

Sandra Godinho - A secura dos ossos
Editora Patuá - 184 Páginas - Capa: Maria Carolina Godinho - Introdução de Mikael de Souza Frota - Lançamento; 2022.

O romance mais recente de Sandra Godinho demonstra a maturidade atingida pela autora após uma curta e intensa carreira literária. De fato, alguns de seus premiados livros anteriores, tais como: Tocaia do norte, A morte é a promessa de algum fim e Estranha entre nós, parecem ter pavimentado o caminho para a importância e urgência desta obra, na qual, mais uma vez, o registro histórico é a base de toda a construção ficcional. Em A secura dos ossos, finalista do Prêmio Leya 2022, o Massacre de Haximu, ocorrido em 1993, é revisitado com sensibilidade e lirismo, mas sem omitir a brutalidade da execução de homens, mulheres e crianças do povo indígena Yanomami que habitavam a região montanhosa de fronteira entre Brasil e Venezuela.

A narradora-protagonista,Tainá Terra, busca compreender porque foi abandonada pela mãe, Amana Terra, aos cuidados do avô em Encantado das Almas, um pequeno povoado ribeirinho, localizado na selva amazônica. Tainá parte em busca da mãe na companhia de Tião Rocha, um jovem seduzido pela promessa dos ganhos financeiros decorrentes do garimpo ilegal na região. Ambos são capturados pelos Yanomami e apresentam reações diferentes ao conflito entre o modo de vida comunitário e espiritual dos povos indígenas e comunidades locais, pretensamente civilizadas. Enquanto Tainá aprende a exercer a própria espiritualidade, após a descoberta de quem é seu pai e do que aconteceu com a mãe, Tião se junta aos garimpeiros.

"Era preciso não perder o senso de realidade, especialmente se tratando de Encantado das Almas, nossa aldeia perdida dentro da selva, onde os mais velhos caminhavam de olhos fechados pelas trilhas e picadas com espantosa destreza, despojados do visual sentido, podendo se orientar somente pelo vento que uivava por entre os galhos, pelo vozeio das pessoas ou pelo canto dos pássaros. Os velhos calejados pela civilização se encontravam tão moldados por esse estado de espírito oriundo do fastio ou da vergonha, tão decantados pela decadência da própria espécie, que já nem mais se aborreciam, acostumados com a escuridão dentro e fora deles. Os velhos, cegos, traziam a sabedoria em seus avessos e a ostentavam como se só assim soubessem viver, prescindindo de todo o resto." (p. 21)

Tainá resiste no início às práticas dos indígenas mas, conduzida pelo xamã da aldeia e pela jovem Luara, passa a conviver com os xapiri, espíritos de tudo que foi vivo um dia sobre a terra, aspirando o pó de yãkoana que nos transforma também em espíritos: "As vozes das árvores, as vozes das águas, as vozes das pedras, todas se avolumavam na minha mente a cada aspirada do yãkoana; eram como vultos se avivando aos poucos, crescendo em importância, ou só então eu lhes reparava a essência. O voo sobre as árvores, a ardência do sol, a força do dia, a cumplicidade da noite que dividia o que era possível e o improvável, era por esses veios que eu vagava."

"A cada novo encontro, o Yanomami lhe trazia uma orquídea de cor diferente, até que Ama pediu que a levasse para conhecer o lugar onde nasciam as flores, pois ela só conhecia as de pano. E ele, até então, só conhecia as naturais. Assim ela embarcou na ubá, sem pestanejar nem piar, seguindo até um varadouro onde, para além da savana, avistou tantas flores de diferentes cores vicejando em troncos de árvores. Os amantes rasgaram sorrisos, falavam para além das palavras, já que a linguagem dela não alcançava a dele a não ser pelo corpo, já que a voz dela e a dele se confundiam num mesmo murmúrio de desejo. Quando se tornaram um só corpo e pensamento, cada um tratou de aprender a língua do outro, apenas como apêndice ou como cortesia, não porque precisassem. em pouco tempo, um já arriscava alguma palavra na língua do outro, pois o amor sempre cria pontes, ainda que fosse um diálogo rudimentar. Em dois meses, já se comunicavam com razoável desenvoltura." (pp. 45-6)

O romance foi inspirado pelo livro A Queda do Céu, de autoria do xamã, líder político e escritor Davi Kopenawa e do etnólogo Bruce Albert, e também do livro Haximu, de autoria de Jan rocha, vindo se juntar às denúncias contra a barbárie recorrente nas terras Yanomami e as práticas de genocídio comuns às atividades ilegais de garimpo e extração de madeira que resultam, em última análise, na violência contra a natureza e os povos indígenas em nosso país. A autora nos ensina a importância do retorno às nossas origens e o resgate da nossa individualidade como seres humanos, como bem destacado na epígrafe: "A busca às origens é também uma busca de valores."

"Eu soube que os índios, curiosos, realizavam visitas aos campos, enervando os garimpeiros com suas presenças, interrompendo as manobras e a escavação. Quando os Yanomami perceberam os rios tingidos de rejeitos, as doenças se alastrando entre eles e a floresta em charcos enlameados, a coexistência pacífica entre eles ficou impossível. A relação entre as partes começou a azedar. Os brancos não só se mostraram arrependidos quanto temerosos do mal uso que os indígenas poderiam fazer das armas presenteadas. A fingida cortesia foi uma tática errada, pois a intimidade dos nativos incluía visitações inoportunas, fazendo com que montassem vigilância. O sono do homem branco ressonava a temos. Cada despertar, um cansaço e uma dormência mal dormida, sonambulando entre homens que já aventavam alguma irritação e muitas providências. Suspeitei que a pólvora estava prestes a explodir." (pp. 146-7)

Sobre a autora: Sandra Godinho, nascida a 27/07/1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Publicou O Poder da Fé (2016); Olho a Olho com a Medusa (2017); Orelha Lavada, Infância Roubada (2018), menção honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019); O Verso do Reverso (2019), Prêmio Cidade de Manaus 2019; Terra da Promissão (2019); As Três Faces da Sombra (2020); Tocaia do Norte (2020) Prêmio Cidade de Manaus 2020 e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2021; Sonho Negro (2021); A Morte é a promessa de algum fim (2021), Prêmio Cidade de Manaus 2021; Estranha entre nós (2022); Memórias de uma mulher Morta (inédito) finalista do Prêmio Leya 2021. A Secura dos Ossos foi finalista do Prêmio Leya 2022.
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