Jess.Carmo 16/04/2024
Uma resposta aos detratores do gênero
Nesta última obra, Butler se ocupa em responder às teses dos detratores do gênero, principalmente dos políticos conservadores, da igreja católica e das feministas transexcludentes. Todos esses grupos afirmam saber qual o lugar natural que os homens e as mulheres devem ocupar na vida social. Dessa forma, o que esses grupos têm em mente é uma ordem de gênero rigorosa que desejam impô-la a todos como natural.
Para Butler, ignorar o fato de que as categorias "homem" e "mulher" mudam historicamente significa negar a complexidade histórica que tornou possível para as vidas que vivemos agora. Negar essa complexidade é de suma importância porque o gênero é um dos marcadores fundamentais para as formas atuais de reconhecimento social.
A partir do momento em que o bebê é desejado por meio do ato de atribuir-lhe um gênero com base na sua diferença anatômica (o que acontece antes mesmo de seu nascimento), uma série de discursos e desejos vão se sobrepor à vida daquela pessoa (mesmo antes que ela possa se reconhecer como pessoa ou como um "eu"), o que determinará como as instituições vão agir sobre aquele corpo. Entretanto, não se trata de negar a materialidade do corpo (algo bem desenvolvido na obra ''Corpos que importam''), mas de questionar "como ela é enquadrada, por quais meios é apresentada e como essa apresentação afeta o que entendemos a seu respeito'' (p. 119).
Temos a tendência a ler isso como uma simples atribuição passiva, o que não é de fato a proposta da autora. As instituições não nos determinam simplesmente, a gente também pode negar aquilo que nos é dado e construir nossa subjetividade de uma outra maneira. Essa atribuição do sexo/gênero não é algo que acontece apenas uma vez na vida, mas um processo que é reiterado ao longo da vida por diferentes instituições e, ''dependendo de onde se vive, pode ser reiterado de formas que nem sempre estão em conformidade umas com as outras. A menina continua a ser tornada menina; o menino continua a ser tornado menino'' (p. 34). O sujeito pode, ao longo de sua vida, ''recusar, temporária ou permanentemente, a interpelação, e grandes debates podem ser travados sobre qual é a maneira certa ou errada de ser homem e mulher''.
Sendo assim, não somos simplesmente determinados historicamente, mas também construímos a história. Nunca é apenas uma autoformação (eu não me construo abstratamente sem as instituições), mas também não é uma determinação incondicional. Existe também essa coisa maluca que é o desejo. Como o desejo se relaciona com as normas de gênero e como essa relação vai criar um registro afetivo desse cenário. Isso nunca acontece de maneira previsível, é sempre um acontecimento. Essa relação da norma com o desejo pode acontecer de forma coerente com as expectativas de como devemos performar o gênero, mas também pode ser completamente contraditória, a ponto de fazer com que aquele sujeito procure romper com ela de alguma maneira. Ou seja, para a autora, podemos encontrar uma forma de construir o nosso próprio caminho e dizer não a esses discursos que se arvoram em dizer qual o nosso papel natural dentro da vida social.
Também não se trata, como interpretam os detratores do gênero, de uma liberdade pessoal desenfreada, já que isso significaria desconsiderar o papel das normas sociais na construção do gênero. É daí que parte a leitura conservadora de que apenas o casamento heterossexual é normativo e que as demais formas são aberrantes, como se uniões que fogem da norma heterossexual fossem avessas a qualquer tipo de normatividade, o que abriria espaço para práticas de pederastia ou pedofilia. Para os detratores, pouco importa que os movimentos LGBT+ ''abominem o abuso sexual e o abuso infantil, tendo seus integrantes frequentemente sofrido seus efeitos''; e ''que o consentimento sexual seja fundamental para a ética queer; ou que a pornografia infantil seja uma forma terrível de exploração'' (p. 91). Além disso, as famílias queers não negam as famílias heterossexuais, apenas contestam esse modelo familiar como o único possível.
Entretanto, ninguém é dono do próprio gênero. Não é possível reivindicar um gênero para si sem que este exceda o domínio da própria pessoa. ''Nascemos em gêneros mediante a atribuição de sexo e as expectativas sociais que a acompanham'' (p. 152). Dessa forma, podemos tentar ampliar essas categorias, mas elas nunca estarão abstraídas da nossa relação com os outros.
Em resposta às feministas transexcludentes e demais conservadores que se utilizam do determinismo biológico para detratar o gênero, Butler diz que ''contestar o determinismo biológico não deveria levar a uma refutação da biologia'' (p. 183). Para ela, ''a nossa biologia está sempre interagindo com forças sociais e ambientais''. Sendo assim, não podemos pensar em fatos biológicos abstraídos dessa interação. Não há uma separação entre os determinantes sociais e as causas biológicas; ambos estão em contínua interação, de tal forma que é deficitário falar de um descontextualizado do outro. Como diz a autora, ''o desenvolvimento ou formação do organismo pressupõe que o biológico requer que o social seja ativado, e o social requer que o biológico produza seus efeitos. Um não pode atuar como poder formativo sem o outro'' (p. 183). Como o bebê humano nasce em um estado de dependência total do outro, seu processo de vida já é social desde o início.
Butler também retoma Marx para defender a necessidade de pensar as dimensões materiais do corpo sem o positivismo. Acho que as publicações do livro no perfil da Boitempo deixam claro que alguns marxistas esqueceram desse ponto. Materialismo histórico-cultural não é positivismo. Para Marx, seu método materialismo deveria levar à crítica do positivismo, já que o positivismo entende o corpo descontextualizado de qualquer tipo de materialidade histórica.
Nessa obra, Butler também insiste na ideia de que a "defesa dos direitos de gênero deve incluir uma crítica às formas como o gênero tem sido usado como moeda de troca pelas instituições financeiras que afirmam ser suas defensoras" (p. 66). Isso porque quando o gênero está associado às instituições financeiras, como o Banco Mundial, ele deixa de ser uma luta de esquerda e se torna uma ferramenta retórica de coerção para atender interesses de exploração e extrativismo. O discurso do Banco Mundial é que "sem gênero, nada de perdão da dívida". Para Butler, é "difícil adotar uma política pública livremente, não importa quão razoável e correta, quando se é compelido a fazê-lo a partir de uma posição de servidão por dívida ou dependência financeira indesejada em relação aos agentes do poder financeiro" (p. 66).
Além disso, as pessoas mais afetadas da privação de direitos relacionados ao gênero são principalmente as pessoas empobrecidas e não brancas. Também não podemos desconsiderar que as relações de gênero mudam dependendo da distribuição de riqueza. As pessoas LGBTQIA+ não podem esquecer que o seu destino também está ligado a outros grupos. Segundo Butler, "é o poder colonial que organiza o gênero de forma patriarcal e heteronormativa" (p. 236). Dessa forma, os movimentos LGBTQIA+ deve se juntar a luta contra as novas formas de colonização, como na Palestina, Porto Rico e Nova Caledônia, que também são lutas contra o racismo e a exploração capitalista.
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