spoiler visualizarMuel 30/03/2021
Para aqueles que sabem enxergar
Os Pequenos Homens Livres é, provavelmente, a melhor forma de introdução ao Discworld. Embora seja o trigésimo volume da série, sua história é independente, iniciando a saga de 5 livros da pequena Tiffany Dolorida (Tiffany Aching, no original) e desenvolvendo seu microcosmo de maneira mais do que excepcional. Aqui Terry Pratchett nos convida à conhecer Tiffany, uma menina de nove anos com notáveis habilidades de aprendizado, percepção e senso crítico e, claro dotada de enorme empatia e determinação, habitante da Terra do Giz. Após seu encontro com a bruxa de nome Perspicácia Tick, que a introduz à um universo mágico que sempre esteve presente de maneira quase imperceptível, a garota se vê obrigada à proteger seu lar e sua família de criaturas vindas do sombrio mundo das fadas. Armada apenas com sua inteligência e, claro uma frigideira, a pequena realiza sua jornada até o mundo das fadas, ao lado de seus novos amigos e protetores, os Nac Mac Feegle (os tais Pequenos Homens Livres), um exército de homenzinhos de 15 centímetros, ferozes e ávidos pela batalha, unidos à protagonista pela admiração que sentem por ela e, claro, pelo propósito de salvar sua terra.
Tolkien (maior influência do autor) é bastante referenciado aqui, muitas vezes de maneira satírica, como o conceito das espadas que emitem um brilho azul na presença de advogados, mas os maiores traços tolkienianos encontram-se na narrativa descritiva e dinâmica e, principalmente, na atmosfera. O livro de Pratchett não nos entrega um universo grandioso e épico como em O Senhor dos Anéis ou O Silmarillion, ele nos remete aos livros "menores" de Tolkien, como Mestre Gil de Ham ou Roverandom, possuindo uma atmosfera intimista, em uma localidade pequena, entretanto bem construída e bem descrita, que faz dela muito fácil de ser imaginada pelo leitor, nós fazendo enxergar que também pode haver beleza na simplicidade. Não é descrito, exatamente, o tempo no qual a história se passa, nem mesmo onde a Terra do Giz se localizaria geograficamente, embora seja fácil presumir que a história aconteça, mais ou menos, ao final da Idade Média e que seu espaço esteja localizado próximo à Inglaterra. A protagonista é carismática, cativante e seu desenvolvimento é feito de forma bastante fluída, sua jornada é atrativa e igualmente fluída e bem construída, tanto a jornada física quanto a de amadurecimento, amadurecimento esse que fica mais do que nítido ao final do livro. Apesar de Pratchett nos oferecer uma história leve, divertida e fácil de ser lida, ela nunca poderia ser chamada de simplória, tampouco pode-se classificá-la como infantil, pois inserida na trama de aventura e magia há as críticas sociais, principalmente ao lugar que as mulheres são ensinadas a ocupar desde crianças, forçadas à se considerarem frágeis e dependentes e, claro aos estereótipos presentes nas histórias infantis que impedem quem às ouve de enxergar o mundo como é, de fato, adquirindo uma imagem distorcida das demais pessoas. Tudo isto encarado pela ótica de Tiffany Dolorida, afinal o outro foco da narrativa é a forma como a protagonista encara o mundo, como menina, como criança e como ser humano, as passagens nas quais sua percepção de certos acontecimentos é narrada são sempre cativantes, nos apresentando um olhar inocente, mas não ingênuo; doce, mas não frágil. A mais memorável dessas passagens, com certeza, é o flashback do enterro de Sarah Dolorida, a avó de Tiffany, figura importante, não apenas na vida da garota, mas na vida de todos os habitantes do Giz, tornando-se, praticamente, uma figura folclórica local. Tal fragmento é, além de lindo, melancólico, silencioso e extremamente imersivo. A relação que recebe maior foco no livro é a de Tiffany com os Feegles, que nos entregam os momentos mais divertidos da narrativa e recebem um maior brilho quando a história se entrega à ação. Os flashbacks são bem recorrentes, a maioria são lembranças de Tiffany em relação à sua avó, que foi essencial na formação de seu caráter e personalidade. Os Pequenos Homens Livres não é apenas uma jornada sobre Tiffany, mas também uma jornada através da mesma, apesar deste não ser o propósito maior do livro, é mais do que possível usar a protagonista como, não apenas uma forma de se guiar pela história, mas também para fazer um estudo dela, afinal, assim como a magia desse microcosmo, a complexidade da garota como personagem só se torna perceptível para quem se dispõem à enxergar além da superfície. Vovó Dolorida é outra personagem cuja construção é executada de maneira excepcional, apesar de sua presença se limitar às memórias da neta. Sua participação na história é indispensável, tanto como uma bússola para as decisões de Tiffany, como também um enriquecimento para o drama e para a própria mitologia da obra. E, claro, há os Feegles. Os pequenos seres sempre aparecem em grande número, o que obrigou o autor à escolher pelo menos cinco deles como representantes deste povo. Esses representantes têm a missão de construir a personalidade, as motivações e as características dos picticies (outro nome para Feegles no livro, referência à palavra pixie (fada)) e fazem isso muito bem, tornando carismática uma raça de criaturas briguentas com um senso moral um tanto duvidoso. Conseguimos entender e valorizar suas motivações e seu modo. Seu jeito de falar é uma das maiores fontes de humor do livro, pois os Feegles, não muito alfabetizados, costumam errar a pronúncia de várias palavras, erros esses que são adaptados com primor nessa tradução em pt/br do livro. Como foi dito antes, os cenários possuem uma atmosfera intimista e imersiva, além de serem muito bem descritos. O ambiente que mais chama a atenção é o descrito no capítulo X, isso porque é uma retratação do autor do quadro O Golpe de Mestre do Lenhador das Fadas, de Richard Dadd, que o pintou para o diretor do hospital psiquiátrico em que se encontrava internado. No fragmento, acompanhamos a interação de Tiffany com os personagens do quadro e conhecemos o significado e a função que Terry Pratchett dá à cada um deles.
Os Pequenos Homens Livres é uma obra de fantasia cuja a acessibilidade, a simplicidade e a facilidade de leitura não diminuem em nada a riqueza de seu universo, de seus personagens e a excepcionalidade e complexidade da narrativa e, principalmente, da protagonista. É impossível não terminar o livro com um sorriso no rosto e um anseio por mais, que é recompensado pelos outros quatro livros que integram a série de Tiffany Dolorida (dos quais apenas dois foram publicados no Brasil, infelizmente). É difícil descrever a sensação sentida após o término, embora eu possa dizer com veemência, que é algo mágico, afinal, "não precisa que ninguém diga que é magia, você sabe que é".