brunossgodinho 09/03/2020Uma obra-prima do ofício do historiadorMarc Bloch foi um historiador de pensamento agudo, como poucos outros ao longo do último século. Sua erudição era pareada à sua incrível sensibilidade para os assuntos humanos. Esse livro é, sem dúvida, resultado dessa junção e, por isso, realiza o grande feito de inaugurar uma nova forma de exercer a pesquisa histórica.
O autor decidiu partir de uma pergunta que é corriqueira aos leigos da pesquisa histórica: "como as pessoas acreditavam
nisso ou
naquilo?" A capacidade de crer do ser humano está intimamente associada a uma outra pergunta, quase sempre inaudita, mas que assombra: "como as pessoas conseguiam
pensar dessa forma?" A história das mentalidades — esse termo ambíguo e mal definido, cuja discussão historiográfica se estendeu por décadas — deu novo lastro, ainda que tardiamente percebido, a uma série de outras histórias: intelectual, cultural, do pensamento, das ideais, etc.
O que
Os reis taumaturgos apresenta ao leitor é a minuciosa análise da documentação histórica, a reconstrução dos fatos segundo hipóteses ora arriscadas, ora comedidas, segundo sua organização e arranjo de acordo com os métodos exteriores da antropologia britânica, da sociologia durkheimiana e da psicologia social. O resultado é, enfim, um novo olhar e a habilitação de um novo sujeito histórico: o coletivo. O povo, a massa, os camponeses, como se queira definir, adquire um estatuto de agente histórico que legitima, em alguma medida, o poder dos monarcas ingleses e franceses. O subtítulo pode enganar, "O caráter sobrenatural do poder régio", e fazer pensar: "trata-se de um livro de história política". Sim, trata-se; mas isso não é tudo.
Os reis taumaturgos é um livro, também, de história cultural. Talvez o primeiro grande exemplo, longamente ignorado nesse aspecto.
Ao fim das contas, Bloch executa um trabalho primoroso no que diz respeito ao rigor de sua pesquisa. Não faz suposições exageradas, que excedam aquilo que seus documentos lhe permitem dizer; corrige suas concepções ao longo do caminho, admite os auxílios de outros naquilo que não sabia resolver ou desconhecia; exibe uma escrita elegante, direta ao ponto, ainda que razoavelmente prolixa (essa prolixidade, inclusive, não é ajudada pelo padrão adotado pela Companhia das Letras, que move as notas para o final do texto, fato de grande incômodo para livros como esse). No todo, é um livro-mestre, um ao qual todo historiador deveria voltar periodicamente (assim como sua inacabada
A apologia da história). Vida longa a
Os reis taumaturgos, vida longa a Marc Bloch.