Raul Maciel 24/11/2023
A Eliane Brum é uma dessas pessoas que eu ouviria por horas e horas seguidas — ouviria e leria. Eu me lembro de, há alguns anos, sempre ler a sua coluna no El País, com textos geralmente maiores que as colunas dos tempos de jornais impressos e igualmente maiores que o tamanho dos textos que geralmente nos permitimos ler nessa nossa vida de internet. Sempre vi valor em cada palavra dela. Uma das suas habilidades é a de pegar temas atuais, muitas vezes o tema ou a notícia da semana, e não escrever textos necessariamente datados, mas sim textos para serem lidos e relidos — por mais duros que sejam; e muitas vezes eles são. Agora, acabei de ler o seu livro A vida que ninguém vê, de 2006, e vencedor do Prêmio Jabuti 2017 na categoria Reportagem. É, sem dúvidas, um dos melhores livros que eu já li. São 21 dos 46 textos que a Eliane escreveu para a coluna A vida que ninguém vê, do jornal Zero Hora, em 1999. O primeiro parágrafo do texto da orelha do livro já me ganhou:
"É tudo verdade. Da primeira à última linha, todas as palavras foram ditas, todos os sentimentos vividos. A vida que ninguém vê é o resultado da busca de uma repórter pela notícia que não estava no jornal. Os textos são reportagens pautadas pelo exercício de um olhar atento aos pequenos acontecimentos, ao que se passa na existência das pessoas desconhecidas. É a trajetória de uma repórter em busca do extraordinário de cada vida — só aparentemente — ordinária. É o avesso do jornalismo padrão."
São 21 histórias de pessoas e personagens que a Eliane encontrou pelas ruas de Porto Alegre e de cidades próximas. Pessoas e personagens como Israel, que "descobriu nos olhos da professora que era um homem, não um escombro", e Adail, que trabalha em um aeroporto, mas nunca viajou de avião, "a menos de uma centena de passos das asas do avião, jamais conseguiu alcançá-las" — o mesmo que diz "me chateia quando aquele povo exibido que vai pros Estados Unidos desembarca falando mal do Brasil" e "eu não conheço outros lugares, mas sei que não tem melhor que o Brasil". Assim, se são incríveis as palavras da Eliane, também são as dos seus personagens, como Alverindo, o Sapo, um pedinte do Centro que não anda e vive no chão, "lambendo com a barriga as pedras da rua", perguntado sobre como é ver o mundo de baixo para cima, ele responde "é mais bonito de baixo para cima do que de cima para baixo. A gente vê muita beleza…". Ao contar sobre o enterro de um filho que morreu ainda no ventre da mãe, o “filho que dificilmente morreria se o pai não fosse pobre”, Eliane finaliza dizendo que “a diferença maior é que o enterro de pobre é triste menos pela morte e mais pela vida”. E essa história, depois, ganha mais um capítulo. A do Adail também.
Comecei a ler este livro no Ben-Café, que nos últimos meses se tornou um dos meus lugares favoritos. Eles têm alguns livros lá, olhei as lombadas, logo este me chamou e quase o terminei por lá mesmo. Perguntei se eu poderia levá-lo para casa e me disseram que a proposta é essa mesmo, levar um, pegar outro, levar, trazer, deixar; trocar. Ainda lá, li a história do Tierri, o chorador de Quaraí:
"Tierri é o chorador da cidade. Chora os mortos de Quaraí. Todos eles. Os ricos, os pobres, os remediados. Os que sucumbem de paixão, os que tombam de doença, os que caem de cansaço. E também os que arriam por desistência. Até mesmo os que morrem porque esqueceram de viver. Tierri chora os mortos não porque alguém tenha pedido nem porque algum parente tenha pago. Não por contrato, mas por gosto. Tierri o faz porque não chorar os mortos é ofender os vivos. Porque chorar a morte é sua missão na vida.
[…]
E sempre que lhe perguntam por que abre as comportas dos olhos para todo e qualquer defunto, sem ver idade, sexo, raça, religião ou posses, Tierri responde do mesmo jeito. Arregala os olhos como se não entendesse tão descabida questão e despeja seu vozeirão enrolado:
- É meu amigo."
Página após página, fui acompanhando a história de David Dubin, o "doce velhinho dos comerciais", Frida na Câmara de Porto Alegre e Eva no mundão — "todas as fichas eram contra ela e, ainda assim, Eva ousou vencer a aposta" — e mergulhei neste livro como não fazia há um bom tempo. Ao nos introduzir a história de Celina e Vany, "duas mulheres em uma geriatria", a descrição da cena é:
"Da cama, Vany começou a reparar que os velhos não chegavam prostrados. Quando chegavam, ainda havia um elo entre eles e o mundo, entre eles e a vida. Então, as horas mortas iam lhes solapando a consciência e a vontade. Iam lhes roubando o sentimento e o sentido. Um dia se exilavam. Primeiro, morria a mente. Depois, o corpo. A dona da geriatria ocultava a morte, inventava uma desculpa, e o velho sumia da poltrona. No dia seguinte outro tomava seu lugar. A espiral do esquecimento se repetia."
Com uma escrita tão incrível, e não como quem romantiza a dor ou a desgraça alheia, mas como quem homenageia pessoas e cenas invisibilizadas por nós e pelo nosso cotidiano, ela própria descreve A vida que ninguém vê como "contar os dramas anônimos como os épicos que são, como se cada Zé fosse um Ulisses, não por favor ou exercício de escrita, mas porque cada Zé é um Ulisses. E cada pequena vida uma Odisséia". Lendo-o quinze anos após a sua publicação e já mais de vinte anos após a publicação dos textos no Zero Hora, não pude deixar de pensar, texto após texto, no que já pode ter ocorrido nesse período todo, que rumo cada vida ali pode ter tomado. Ali, no café, em frente à Praça Osório, ao ler a história de Camila, que desde os seis anos ganhava a vida nos sinais do Centro e que faleceu aos dez anos, ainda no início de 1999, não pude deixar de pensar muito sobre a brutalidade da vida para tantas pessoas em tantos cantos — elas, sempre marginais, nunca centrais; mesmo que vivam no Centro, nunca centrais. E me levei pela história, pelas descobertas e pelas suposições (e possibilidades e probabilidades) sobre o álbum de Carlita, como pela jornada de Dona Maria, que realizou o sonho de aprender a ler e a escrever aos 55 anos.
"- Qual foi a primeira palavra que leu?
- Igreja. Vi o "i", aí comecei a pensar. E fui juntando. E deu "igreja". Nossa, me deu uma coisa. Foi quase como o primeiro filho. Porque o que eu mais quero é ir na igreja, pegar a folhinha e ler.
[…]
- E afinal, o que é ler?
- É assim. Eu achava que letra era letra. Era como uma toalha de mesa. Não tinha vida. Esses dias tava no colégio, olhei e descbri que as letras têm vida. Eu leio e elas conversam comigo, me dizem o que eu preciso. Contam coisa que eu nem imaginava. Tipo "M" de Maria, né? É só um "M", mas quando junta tudo, a Maria fala comigo. A Maria fica viva."
A escrita da Eliane só existe a partir do olhar dela e de como ela se permite olhar o mundo e olhar cada pessoa como cada pessoa vale e merece. Não sei se neste livro podemos ver o mundo, mas certamente vi ali muito além de Porto Alegre: vi muito do Brasil, desse nosso Brasilzão, dos nossos Brasis, da nossa brasilidade em seus feitos e em suas forças e também em suas maiores dores e contradições. Ao virar a última página, penso como há pessoas e histórias incríveis em todo canto e que é certo que nem todo mundo saberá ou mesmo poderá contá-las com a mesma habilidade da Eliane Brum; talvez, inclusive, nem todo personagem incrível das nossas ruas queira ter a sua história contada de qualquer forma que seja. Mas não nos permitirmos olhar e ouvir é nos brutalizarmos ainda mais. As nossas ruas e os rincões guardam verdadeiros tesouros e em A vida que ninguém vê está uma parcela pequena, mas preciosa.
site: https://medium.com/@raulmaciel/boa-viagem-pela-vida-e0950c73497c