Fabio Shiva 01/12/2023
A ABSURDA CONDIÇÃO DAS PESSOAS DE PAPEL VIVENDO DRAMAS ULTRAPASSADOS
Eu tinha 12 anos quando pela primeira vez li uma história de Sidney Sheldon. Foi “O Outro Lado da Meia-Noite”, emprestado por um tio de outra cidade que nos visitava, com a condição de que eu lesse as quase 400 páginas do livro durante os três dias que ele passaria lá em casa. Varei noites sem dormir, mas cumpri a missão, eletrizado por aquela história diferente de tudo o que eu havia lido até então. Mulheres fortes vivendo situações incríveis em meio a muita tensão e suspense, além de além de algumas cenas bem picantes, que acenderam a minha imaginação adolescente... Nem preciso dizer que virei um ardoroso fã de Sidney, e nos dois anos seguintes li tudo dele que consegui encontrar: “O Reverso da Medalha”, “A Herdeira”, “Um Estranho no Espelho”, “Se Houver Amanhã”, “A Ira dos Anjos”... Lembro que li também “A Outra Face”, estranhando o protagonista ser um homem, e não uma mulher como nos outros livros.
Depois não lembro bem como aconteceu, mas acho que enjoei de Sidney Sheldon. Creio que foram as leituras de Stephen King que me arrebataram para outro tipo de best-seller...
Anos depois, já em 2019, tive um novo encontro com Sidney Sheldon, ao ler “O Céu Está Caindo” (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2019/03/o-ceu-esta-caindo-sidney-sheldon.html). Achei a trama de suspense bem inócua e até sedativa, impressão bem diferente das que tive com as leituras anteriores. E agora tive a oportunidade de reler “A Outra Face”, o primeiro romance escrito por Sheldon.
Logo nas primeiras páginas fui surpreendido de forma bastante desfavorável, lamento dizer. A história começa com um personagem que acaba de ser “curado” de seu homossexualismo, graças ao zeloso empenho de seu terapeuta, o Dr. Judd Stevens, que logo descobriremos ser o herói da trama. E na sequência o mesmo doutor pronuncia uma frase bastante problemática sobre uma jovem negra, frase que no livro é apresentada como um conselho repleto de bondade e sabedoria. Ler coisas assim nos dias de hoje causa desconforto e estranheza, mesmo que demos todos os descontos devidos à época em que o livro foi escrito (1970). Contudo há outras escorregadelas que não podem ser atribuídas ao Zeitgeist, como na passagem em que Freud é chamado de “pai da psiquiatria”. Só mesmo o próprio Freud para explicar tal ato falho: um escritor que confunde psicanálise com psiquiatria mostra bem como foi natural para ele imaginar uma história que começa com uma “cura” gay.
O pior é que essas não são as maiores falhas de “A Outra Face” (embora sejam certamente as mais inaceitáveis para os leitores de hoje). Os personagens são bidimensionais, rascunhados como pobres pessoas de papel que não chegam a comover com seus dramas. Ao menos não me comoveram nessa segunda leitura. Creio que o leitor adolescente que leu esse livro há tantos anos gostou bem mais. Ainda assim, não desgostei o suficiente para abandonar a leitura. Senti uma curiosa sensação sedativa, semelhante à que experimentei ao ler um bolsilivro recentemente (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2023/08/voce-ja-leu-um-bolsilivro-era-o-tik-tok.html). Uma história de assassinato e suspense para me ajudar a pegar no sono.
Apesar dos pesares, ainda guardo uma boa recordação afetiva dos livros de Sidney Sheldon que li durante a adolescência. E ainda pretendo reler algum de seus melhores livros “Se Houver Amanhã” ou “O Outro Lado da Meia-Noite”. Pois muito me intriga a seguinte constatação: durante a década de 1980, Sidney Sheldon era disparado um dos escritores mais lidos no mundo. E hoje, salvo engano, a impressão que tenho é que quase ninguém mais o lê.
Para mim, que sempre fui um rato de sebo e que nunca me interessei por ler algo só porque todas as pessoas estavam lendo, esse fenômeno do best-seller é mesmo muito intrigante.
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