Michelle Alves 02/06/2017ESPIRITUALIDADE E RESISTÊNCIAA Terra é uma ruína ambiental, onde os recursos essenciais estão escassos. Um planeta distante é colonizado para a extração de recursos e, durante esse processo, o ambiente local é assolado e os povos indígenas são oprimidos. Alguns terráqueos, incluindo ecologistas e antropólogos, são simpáticos com os nativos e críticos com as práticas coloniais, e um terráqueo, em particular, cultiva uma relação com um dos nativos.
No entanto, a tensão entre os dois grupos leva ao confronto final. Em preparação para a batalha, a tribo local recruta a participação de outros clãs, a fim de montar uma força maciça contra o seu inimigo tecnologicamente avançado.
A sociedade nativa descrita baseia-se principalmente na caça, e as mulheres são incluídas entre os caçadores. Os indígenas têm uma reverência religiosa pelo mundo natural, e a cultura e natureza estão intimamente interligadas.
A espiritualidade envolve relações animistas com presenças espirituais individuais, bem como uma íntima conexão com o sagrado como um todo (Gaia). Esta cultura indígena é apresentada sob uma luz fortemente positiva.
Por outro lado, a obra oferece uma erosão do racismo em direção aos povos indígenas, o militarismo desenfreado e a destruição ecológica e injustiça social do capitalismo corporativo. Na verdade, os nativos consideram os invasores insanos.
Este cenário é destinado a descrever os contornos básicos e a estrutura do filme americano “Avatar”, de James Cameron. Mas é ao mesmo tempo um resumo de “A Floresta é o Nome do Mundo”, um romance de Le Guin, publicado originalmente em 1972. O grau de semelhança na narrativa, tema, tom e perspectiva apresenta uma semelhança impressionante e, além disso, ambos os trabalhos são simultaneamente distópicos e utópicos, e remete a um cenário apocalíptico. Não lembro de Cameron citar essa obra como influência para o seu filme, mas é bem provável que ele bebeu da fonte. Esse tipo de situação parece ocorrer frequentemente com a autora, infelizmente.
Entretanto algumas diferenças ocorrem entre as duas obras, das quais ao menos duas merecem ser pontuadas: se no filme de Cameron apresenta a figura do Messias Branco, que veio para os nativos e lhes trouxe uma vitória que não conseguiram por eles mesmos – com a fantasia de deixar para trás os constrangimentos da civilização e tornar-se indígena – , em Athshe/NovoTaiti os nativos forma liderados por outro nativo e novo “Deus” Selver, conseguindo a vitória por si mesmos (o simpático humano Lyubov era em grande parte impotente; não havia nenhuma fantasia branca de ser um nativo naquele mundo). A outra diferença fundamental entre as duas obras é o questionamento sobre a violência. No livro, apesar de bem-sucedida em livrá-los da ameaça terráquea, foi apresentada como má e corruptora, e que possivelmente poderia permanecer na cultura dos nativos. Assim, eles aprenderam, adotaram e empregaram o ódio e a violência de seus opressores, e não havia certeza se esse mal simplesmente poderia desaparecer. Em “Avatar” não há esse questionamento, o tom da obra é mais apocalíptico do que distópico.
No filme a natureza é tida como altamente ativa e perigosa,
"Para além dessa cerca, todos os seres vivos que rastejam, voem ou se agacham na lama querem matá-los e comer os olhos como jujuba"
no livro ela é um lar pacífico e agradável para os athsheanos (assim também, a violência é contrária à sua cultura). Chamados de “critures” (em inglês creechies), termo pejorativo utilizado pelos terráqueos, são um povo marginalizado que foram submetidos a um trabalho escravo voluntário.
Para além de Server e Lyubov, temos o capitão Davidson representando uma visão de mundo opressivamente hierárquica - o antropocentrismo e a lógica da dominação, demonstrando a arrogância humana. Quando chegou, tudo o que viu foi escuridão e caos, o que para ele foi uma espécie de vazio:
"quando eles vieram aqui não havia nada. Árvores.
Uma confusão escura e um emaranhado de árvores, sem fim, sem sentido"
Para os athsheanos o solo, o terreno, a terra, não eram o lugar a que os mortos regressam e através do qual os vivos vivem: a substância do seu mundo não era a terra, mas a floresta. Por isso, para eles, aquele mundo era chamado Athshe, que significa floresta e o mundo. Em termos de espiritualidade, a floresta era vista não tanto como o lugar do sagrado, mas como o próprio mundo sagrado. Os nativos estavam organicamente integrados em seu mundo florestal, vivendo dentro e como parte da floresta, convivendo também com os espíritos dos rios e árvores. Sonhar não era simplesmente o que acontece durante o sono, era uma arte espiritual que exigia treinamento.
“Floresta é o nome do Mundo” é sobre uma história de resistência de um povo. Influenciada pela Guerra do Vietnã, é notório o sentimento antimilitarismo e anticolonialismo presente no romance. A crítica do livro tem alcance muito mais amplo, incluindo a longa história do imperialismo ocidental, desde suas raízes ideológicas e psicológicas até seus efeitos catastróficos. Os athsheanos podem lembrar os leitores não só dos aldeões do Vietnã, mas também dos nativos americanos, escravos africanos, os trabalhadores asiáticos e até mesmo os indígenas brasileiros. É o segundo livro na linha cronológica do Ciclo de Hainish e a traz críticas que são características das distopias Le Guin, matizando a ambiguidade e a auto reflexividade.
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Avatar, Direção: James Cameron. Twentieth Century Fox Film Corporation, 2009.