spoiler visualizarcupido.literário 03/12/2019
Luuandino
A obra Luuanda, de Luandino Vieira, teve sua primeira edição publicada em 1963. O
livro é composto por três estórias: "Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos", "A estória do ladrão e
do papagaio" e "A estória da galinha e do ovo", as quais têm em comum o gosto pelo
cotidiano e a ambientação no país de origem do autor: Angola.
A primeira estória retrata a vida da nga (senhora) Xíxi e seu neto Zeca Santos, que
sobrevivem à extrema pobreza comendo o que lhes aparece. A segunda conta a história de três
amigos que estão presos por roubo, todos marginalizados, cada um com seus conflitos
individuais, mas que se entrelaçam ao buscarem pela sobrevivência. A terceira e última traz a
disputa de duas mulheres por um ovo - Zefa, dona da galinha, e Bina, moradora da
propriedade em que a galinha botou o ovo - se enfrentam a fim de saber quem tem o direito de
ficar com o ovo, entre as reivindicações de uma e de outra, surge Vavó Bebeca, a figura que
representa o mais velho como mediador de conflitos.
As narrativas se passam em bairros periféricos, os chamados musseques, espaços da
miséria e da segregação por excelência.E é a vida cotidiana nesse lugar que Luandino nos
apresenta, onde ele também viveu. Além disso, elas têm em comum a luta pela sobrevivência
diante da fome, da criminalidade e da violência no período colonial tardio.
Conhecer minimamente o contexto histórico da obra é importante para entender com o
que Luandino está lidando e porque Luuanda é tão impactante. Na década de 60, Portugal
enfrentava a ditadura salazarista e Angola ainda era colônia, desse modo, é evidente a
oposição entre brancos e negros, ou seja, entre colonizadores e colonizados. Vale lembrar que
o país teve sua independência somente em 1975, após mais de uma década de conflitos
armados na Guerra de Independência (1961-1974).
Isso se nota, por exemplo, pelo poder representado pelos brancos, os quais, através das
falas de alguns personagens, são vistos como inspiração por personagens como Inácia ? na
segunda estória - quem queria ser como sua senhora, ou então por vavó Bebeca ? na terceira -,
que afirma a sabedoria dos brancos. Percebe-se, assim, como consequência do colonialismo,
um provável sentimento de inferioridade dos negros em relação aos brancos, mesmo que,
algumas vezes, inconsciente.
A tradição africana, especificamente a angolana, se reflete a cada página, seja pela
língua, pela culinária ou pelo respeito à sabedoria dos mais velhos. Em meio a isso,
enxergamos também as relações conflituosas entre negros Vs. brancos, jovens Vs mais
experientes, liberdade Vs. prisão, amor & violência. Também é bastante notável a valorização
do trabalho, um típico requisito do ?homem digno?.
Vale destacar o caráter inovador da linguagem, pois o autor se desvia do português
dito padrão, a língua prestigiada, quebrando sua sintaxe e incluindo palavras e expressões em
Quimbundo, a língua do povo Bantu, da oralidade, porém, desprestigiada. É justamente a
tradição oral que ajuda a preservar a memória de um povo. É possível fazer uma aproximação,
no plano da linguagem, a Guimarães Rosa, quem muito inspirava Luandino Vieira.
Desse modo, vemos o conflito entre as identidades locais, dos colonizados e a cultura
dos colonos. Surpreendentemente, no final da obra, somos avisados de que talvez nenhuma
dessas estórias tenha acontecido. Entretanto, o ambiente retratado e o sofrimento se
assemelham à realidade que, comprovadamente, foi marcada por essas características e, como
se sabe, se deve às opressões e às violências impostas pelo colonialismo em Angola.
Luuanda conta com uma verossimilhança encantadora do ponto de vista da criação
literária, mas é dramática, no sentido de relatar uma desigualdade cruel. Portanto, a obra é se
mostra relevante não somente como arte da palavra, mas também como retrato
sócio-histórico da capital angolana, uma espécie de testemunho de um tempo que deixou
muitas marcas nesse povo e nessa terra.