Ladyce 25/06/2020
Na geometria projetiva duas linhas paralelas se encontram no infinito. No livro "A distância entre nós" de Thrity Umrigar elas não só se encontram como colidem por volta da página trezentos. Trata-se da história de duas famílias lideradas por mulheres viúvas, na maior e mais importante cidade indiana, Bombaim. Sera Dubash é uma mulher de classe média alta, parsi, que vive confortavelmente num apartamento na zona residencial da metrópole. Tem uma filha, casada, passando pela primeira gravidez e cuida da sogra idosa e acamada. Sera tem uma empregada doméstica há mais de vinte anos, Bhima, com mais de sessenta anos, cujas dores do corpo maltratado precisa ignorar para trabalhar e manter a neta estudando. Bhima é extremamente pobre. Vive numa favela na cidade, numa casa sem banheiro próprio. Necessita usar o sanitário comum do local, e, sem móveis, dorme no chão.
Ainda que Sera e Bhima vivam em mundos distantes, cada qual, à sua maneira, trata da outra, conhecendo os segredos que cada uma esconde, a vergonha social que as domina. Sera foi protagonista de casamento violento e foi constantemente maltratada pela sogra que hoje depende de sua assistência. Bhima foi abandonada pelo marido, que ao sair de casa levou com ele o filho, deixando para trás a pequena irmã do menino. Ao longo das décadas de serviço as duas mulheres vieram a se solidarizar com os sacrifícios que sabiam a outra fazia. Bhima perde a filha e o genro para a AIDS e cria, agora, nos últimos anos de vida a neta, que, recipiente da generosidade de Sera, estuda na universidade, o que seria impossível de outra forma. No entanto, quando o livro inicia, sabemos que uma grande desgraça acontece com Maya, neta de Bhima. Ela engravida ainda solteira, enquanto cursa a faculdade e Bhima se vê sem meios de resolver o problema a não ser com a ajuda de Sera e sua família. A solução e as razões evocadas para tal são fonte de grande conflito interior para Bhima e Maya e só no final, entendemos perfeitamente os motivos de tanto sofrimento.
Temos, portanto, uma prato cheio de emoções conflitantes. agravadas por preconceitos sociais, pobreza, intolerância e separação de castas sociais culturalmente mantidas, a despeito da constituição indiana de 1947, que as abole.
Thrity Umrigar é excelente escritora. Mantém bom ritmo na narrativa, descreve, através dos pensamentos dos personagens, ambientes à sua volta. Diálogos e linhas de pensamento, reflexões sobre eventos passados abrem a porta para vislumbramos conflitos presentes. O texto corre solto, sem soluços, visita cada família esboçada, e reflete das dúvidas às ações nem sempre dignas dos personagens. Em menos tempo do que se imagina, é possível ver que as duas famílias se espelham e o paralelismo entre as realidades é conduzido com maestria.
Há leitores e leitores. Nos meus grupos de leitura "A distância entre nós" teve aprovação quase unânime. O livro foi considerado repleto de questões relevantes, uma entrada para a cultura milenar da Índia, reflexivo sobre as emoções humanas mais conhecidas, arrebatadoras. Amor, traição, decepção, esperança, sacrifício, felicidade são todas emoções fortes, tratadas no desenvolver da história. Sinto revelar que fui a voz da discórdia. Justamente porque há leitores e leitores. A mim, agradam textos mais sutis. A meia palavra fere mais do que a altercação. Querelas sentimentais me cansam. Não sou adepta da novela, muito menos das explosões emotivas tradicionalmente retratadas nos seriados mexicanos, por exemplo. Arroubos de emoção (seja ela a que for) me distanciam. Acho-os de difícil empatia. E a escrita de Thrity Umrigar, neste livro, detalha as fortes emoções que levam a decisões extremas. Um pouco fora da minha preferência.
Mas, se você acredita nas emoções violentas, nas emoções mais básicas do ser humano, do amor à traição e não se incomoda com os dramalhões. Se você é noveleiro, se entende e simpatiza com o sofrimento escancarado dos personagens, este livro é para você. Boa história, resolução final esperançosa. Vá em frente. Você vai gostar.