Ana Aymoré 20/07/2020O apelo de CassandraFilha de Príamo e Hécuba, irmã de Heitor e Páris, Cassandra é uma das personagens centrais dos mitos relacionados à guerra de Tróia, figurando como personagem-chave em algumas das mais importantes obras literárias da Antiguidade clássica que chegaram ao nosso tempo: desde o célebre épico homérico Ilíada, passando pela tragédia Agamemnon, de Ésquilo e chegando à Antiguidade helenística com o poema trágico Alexandra, de Lícofron. O mito nos conta que, compartilhando com o gêmeo Heleno o dom da profecia, Cassandra teria se tornado sacerdotisa no templo de Apolo em sua Tróia natal, mas enquanto o irmão enveredava pelo caminho mais tradicional dos áugures, as profecias de Cassandra não se apoiavam em elementos externos e convencionais (como as vísceras dos animais sacrificados), mas nos sonhos e visões. Então, quando o soberbo Apolo apaixona-se pela jovem troiana e é por ela rejeitado, decide castigá-la e, sem poder retirar dela um dom divino previamente concedido, faz com que suas previsões sejam para sempre e por todos desacreditadas. A partir daí, desenrola-se a tragédia de Cassandra: a sacerdotisa antevê o destino final de sua Ília, invadida e arrasada pelos gregos, a morte atroz de sua família, e também seu próprio e terrível fim, mas ninguém dá crédito às suas palavras.
.
Ao retomar a reestrutura do mito no contexto dos anos 1980, repensando-o diante do quadro da Guerra Fria, da polarização capitalismo vs. socialismo dramatizada de forma aguda na Alemanha dividida, da corrida armamentista, a alemã oriental Christa Wolf inverte o ponto de vista da herança clássica, contando a história da guerra de Tróia sob o ponto de vista dos vencidos, e relacionando a vitória dos aqueus à formação de uma estrutura histórica patriarcal, baseada na apropriação, no cálculo e na violência, e na consequente falência de modelos mais antigos, matriarcais e holísticos, de sociedades. A contraposição, no romance, entre a desafortunada Cassandra e o impiedoso Aquiles, representa esse embate entre essas duas formas (num sentido jungiano) arquetípicas.
.
Além do romance que reconta a história de Cassandra nessa dupla perspectiva - anti-hegemônica e feminista - essa edição da Estação Liberdade contém as quatro conferências nas quais a autora discorre acerca de sua criação literária, conectando-a de forma mais transparente às suas próprias inquietações. Tornou-se, sem dúvida, um dos livros favoritos da minha vida.
.
Hoje, quando estamos novamente em um cenário catastrófico, dominado pelas forças opressivas do patriarcado e do capitalismo, as vozes de Cassandras - das mulheres, dos excluídos, dos trabalhadores, das minorias, de indígenas - precisam, mais do que nunca e urgentemente, fazerem-se audíveis, fazerem-se acreditar. Só haverá um amanhã feliz, digno e pleno quando esse clamor deixar de ressoar no vazio, e possa se tornar o ponto de partida para a construção das utopias na realidade.