Thalya 12/11/2020
O escritor ou o contador: aquele que passa pelas missangas, as histórias
"A missanga, todas a vêem.
Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas.
Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo." (Epígrafe)
Os vinte e oito contos presentes nessa coletânea serão amarrados por o mesmo fio: o autor, Mia Couto ou uma figura abstrata que une a todas as narrativas e personagens, estes, as missangas.
Os diferentes narradores e narradoras irão estar interligados/relacionados pela dureza, aspereza e as complexidades humanas. Todas as dores, sofrimentos e amores existentes na vida humana. Sentimentos, sensações e vivências universais, apresentadas e mostradas por relatos confessionais daquelas e daqueles que sentem a realidade da forma mais crua e cruel. E chega a parecer que o poeta é um personagem que paira pelas histórias, ouvindo as confissões desses abjetos, perdidos ou "desencontrados". Eles se confessam, se abrem, afinal desejam ser guardados, eternizados, porque se perderam durante seus percursos e caminhos.
"Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as
lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por
educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de
céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança." (Inundação)
Todos estão ligados pelo fio que é a vida. Mas as similaridades não acabam aí. Percebemos também o trabalho com o insólito, o que é estranho, fora das leis naturais e lógicas no nosso mundo, contudo é naturalizado dentro das histórias. E muitos contos trazem pessoas que voam, se tornam cães, que falam com peixes ou que remam até o céu em busca de água.
A naturalização do estranho, incompreensível aqui lembra muito o Realismo Maravilhoso de Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Isabel Allende etc. Inclusive pode remeter aos contos contemporâneos de Lygia Fagundes Telles, como "As Formigas", em que a estranheza é natural, embora não deixe de assustar os personagens em muitos momentos.
Ainda assim, enfatizemos, os relatos irão abranger temas e críticas reais e sociais, desde preconceito, machismo, racismo, violência contra a mulher e opressão. Principalmente nos contos, "O homem cadente" "A saia almarrotada", "Meia culpa, meia própria culpa", "Os olhos dos mortos" e "Novo Padre", para citar somente alguns. E em todos a memória, a falta de perspectiva e de esperança na estrutura social estarão muito presentes.
"– A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São
sempre tantas, as missangas." (O Fio e as missangas)
Se o autor moçambicano, Mia Couto é o poeta - ou dá voz a este - o fio que passa pelas contas, as missangas, ele consegue com maestria unir uma linguagem poética e filosófica, criando/recriando neologismos e palavras dúbias, que exigem interpretações mais profundas - outra referência que podemos lembrar é o autor português Valter Hugo Mãe, que possui essa mesma característica.
Ao criar uma linguagem poética, a dureza das existências desses confessores se torna um fardo mais leve de ser lido e carregado pela leitora ou leitor. Obviamente, objetivo proposital do escritor. E funciona, atestemos.
"Nunca quis. Nem muito, nem parte. Nunca fui eu, nem dona, nem
senhora. Sempre fiquei entre o meio e a metade. Nunca passei de meios
caminhos, meios desejos, meia saudade. Daí o meu nome: Maria Metade." (Meia culpa, meia própria culpa).