Vermelho Amargo

Vermelho Amargo Bartolomeu Campos de Queirós
Bartolomeu Campos de Queirós




Resenhas - Vermelho Amargo


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Renata CCS 06/11/2014

O alívio do amargor

"Quem já passou
Por esta vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá
Pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou
Pra quem sofreu(...)"

- Como Dizia o Poeta (Vinícius de Moraes)


Em VERMELHO AMARGO, livro de cunho autobiográfico, Bartolomeu Campos de Queirós revisita passagens da própria infância, suas difíceis memórias afetivas, para criar uma história impregnada de poesia.

O livro fala da infância, de perdas, de partidas, de vazio, da verdadeira dor da existência. O autor consegue falar de sentimentos devastadores com uma suavidade e encantamento que imprime ainda mais significado a cada palavra escolhida para compor essa belíssima obra.

Ele relembra seu tempo de criança marcado pela morte da mãe, que é representada pela extrema graciosidade e paixão em que colocava em tudo o que fazia, substituída por uma madrasta indiferente, de escasso afeto e de atitudes mecanizadas.

A morte é apresentada logo nas primeiras páginas, quando conhecemos a mãe que, de certa forma, morre toda vez que é lembrada no tomate maduro, vermelho carne, que assombra o menino. A mãe, o tomate e o primeiro sentimento de amor se complementam em uma metáfora que sempre se renova cada vez que é invocada.

Como símbolo da agonia sofrida, o tomate é evocado e exposto de maneiras diversas, mas sempre possui o mesmo gosto amargo, sabor que predominou em quase toda a sua infância. Através das mãos delicadas da mãe, o tomate era cortado em cruz e se "transfigurava em pequenas embarcações ancoradas na baía da travessa." Já a gélida madrasta cortava o tomate "em fatias, assim finas, capaz de envenenar a todos."

A vida passou a ser dividida entre a imagem positiva da mãe e a figura negativa da madrasta. E é nesse vai e vem do tomate, ora amargo, ora doce, que o protagonista fala de si mesmo, de suas relações com a família e de sua visão do mundo.

Com a saudade cravada na alma, o menino observa a família lidar com a perda: o pai que bebia demais, o irmão que comia vidro, a irmã que tricotava sem parar, e outras adversidades que o levam para uma época que não tem volta, mas com uma dor e sentimento de perda que sempre o acompanharam.

Bartolomeu Campos de Queirós conseguiu conquistar de imediato a empatia do leitor com sua prosa poética refinada, sensível e carregada de simbolismo. Mergulhamos em um universo que, embora esteja longe de mostrar uma infância feliz, está carregado de paixão e beleza.

Não há exatamente uma história, uma linha reta de narrativa, é mais como sucessão de lembranças. A história não se divide em capítulos, mas em parágrafos, em gomos que vão se unindo no todo, técnica utilizada com maestria pelo escritor. O que o Bartolomeu fez foi produzir um diário de memórias, uma fábula delicada, um livro de poesias, com uma linguagem tão sublime e soluçante que, além de tradutora de estados interiores, atravessa a verdadeira dor da existência.

É um relato repleto de poesia que nos enche de sentimentos contraditórios. Um livro incrível, fantástico se você souber apreciar. Muito simples em sua ideia central, a história do amor de um filho por sua mãe, talvez um dos amores mais puros e universais.

O livro é um tesouro, um achado, um lindo presente. Um dos mais lindos que já ganhei. É uma experiência que recomendo a todos, pois não é possível vivenciá-lo através de opiniões diversas, por mais honestas que possam ser.

Leiam. Simplesmente leiam.



"Mesmo em maio com manhãs secas e frias sou tentado a mentir-me. E minto-me com demasiada convicção e sabedoria, sem duvidar das mentiras que invento para mim. Desconheço o ruído que interrompeu meu sono naquela noite. Amparado pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri imprecisa saudade do mundo, confirmada pela crueldade do tempo. A Vida me pareceu inteiramente concluída. Inventei-me mais inverdades para vencer o dia amanhecendo sob névoa. Preencher um dia é demasiadamente penoso, se não me ocupo de mentiras." (p.7)

"A esposa de meu pai prezava o tomate sem degustar o seu sabor. Impossível conter em fatia frágil além da cor, semente, pele também o aroma. Quando invertida, a palavra aroma é amora. Aroma é uma amora se espiando no espelho. Vejo a palavra enquanto ela se nega a me ver. A mesma palavra que me desvela, me esconde. Toda palavra é espelho onde o refletido me interroga." (p.12)

"Tantos pedaços de nós dormem num canto da memória, que a memória chega a esquecer-se deles." (p.16)

"Ao amar, desvendei a serventia do corpo para além de guardar a alma importal.(...) No amor, meu corpo delatou a presença da alma, que veio morar na superfície da minha pele." (p.27)

"(...) passarinho é uma vírgula pontuando o céu. Eu ensaiava ler as perguntas que preenchiam o azul vazio e os pássaros virgulavam. Descobri ser uma língua estrangeira a voz dos pássaros, e embaraçava-me. Então, subvertia respostas para tapear meu desconsolo. Não ter resposta é confirmar-se ausente. Viver exige perguntas e eu, mudo, não sabia responder." (p.30)

"Não dar palavras ao desejo é ocultá-lo na solidão." (p.48)
Nanci 31/10/2014minha estante
Renata,

Esse livro é uma preciosidade. Não me canso de elogiá-lo. É uma alegria saber que você também gostou.


Arsenio Meira 31/10/2014minha estante
Para livro tão belo, uma resenha idem. Quando eu o li, foi como uma pancada de arrebatamento. É poesia pura.



Renata CCS 31/10/2014minha estante
Sem dúvida, amigos, este livro é uma pequena jóia preciosa. Muito querido e já entrou para a lista de favoritos.


Catharina 03/11/2014minha estante
Que resenha sedutora. Vou ler, com certeza!


Ygor Gouvêa 03/06/2016minha estante
Que resenha Renata




Pedro Sucupira 25/02/2021

2021 LIVRO 14 – Vermelho Amargo, Bartolomeu Campos de Queirós.
Vermelho Amargo é um dos livros de cunho autobiográfico do escritor mineiro, vencedor do prêmio Jabuti e de tantos outros prêmios literários, Bartolomeu Campos de Queirós. Narrado em primeira pessoa e escrito em forma de memórias, o protagonista, o caçula de cinco filhos, revisita sua infância. Uma infância marcada pela solidão. A ausência da mãe substituída por uma madrasta indiferente, tomada de ciúmes pelo marido, que serve em todas as refeições fatias de tomates. O pai alcoólatra negligente.

O livro é escrito em pequenos parágrafos memórias como se fosse uma espécie de contagem regressiva em que o narrador observa os irmãos um a um abandonando o lar e deixando-o mais imerso em solidão. Um livro que fala sobre ausência de afeto e saudade da mãe.

Poético e delicado em que o leitor tem que ir adivinhando a história em meio a tantas metáforas. Quase que um jogo de adivinhação. Uma metáfora mais maravilhosa que a outra. É o irmão que come vidro, a irmã que não se desapega das agulhas e o ponto cruz e a madrasta obcecada com a perfeição das fatias de tomate.

Algumas metáforas que me encantaram.

“Ela decapitava um tomate para cada refeição. Isso, depois de tomar do martelo e espancar, com a força dos seus músculos, os bifes. Sofrer amaciava, talvez ela pensasse. Batia forte tornando possível escutar o ruído na rua. O martelar violento avisava aos vizinhos que comeríamos carne no almoço. Eu padecia de medo do martelo e a violência da mulher ao açoitar a carne.”

“Os bifes eram finos – magros como eu – pelo amargor dos espancamentos. Ao depois de muita tortura, a carne se transfigurava em pedaços de rendas esgarçadas.”
“Eu vagava sobre o compasso do pecado. Tudo por escutar as frestas das janelas. Menino pecador sem remorso, eu suplicava perdão, sem fé, caminhando entre dúvidas. Não, não amava a Deus sobre todas as coisas. Amava meu amor mais que a mim mesmo. Outra vez embaraçava-me nos abraços. A felicidade destrancava um paladar ácido de culpa que só a alma degusta.”

“A madrasta montava a comida em cada prato. O arroz de um lado. O feijão ralo ficava ancorado no arroz, lembrando uma praia mansa com um mar negro, se ondas. Na extremidade do oceano, uma ilha feita de abóbora, chuchu ou quiabo, segundo sua escolha. Um fragmento de carne – renda bem engomada – segurava o arroz. A fatia de tomate entrava como um sol, sobre o arroz em neve, colorindo o seu império.”

“Ah! O tomate. Quanto espanto ele me suscitava. Sua presença anunciava meu exílio. Um dia, por certo, eu deveria ser deportado, mesmo sem cometer crime. Nunca supus que carregaria comigo – vida afora – a imagem do tomate maduro preso entre seus dedos. Mas não recusei, jamais, a fatia que me tocava. Minha mãe anunciava que para viver era preciso engolir sapos. Mesmo gosmentos, ásperos, enrugados, é necessário deixá-los deslizar garganta abaixo, sem lastimar. Não há semelhança aparente entre o sapo e o tomate. Um vive, o outro vegeta.”

Publicado originalmente em pedrosucupira.com
Daniel 25/02/2021minha estante
Tá entre meus livros favoritos. Foi um grande surpresa quando li. Lindo demais esse livro.


Pedro Sucupira 26/02/2021minha estante
Eu tbm me surpreendi. É um dos melhores livros que eu já li. Ele é muito fantástico. Eu fiquei apaixonado com as metáforas. Uma melhor que a outra.


Daniel 26/02/2021minha estante
Uma faca, um garfo e um tomate jamais serão os mesmos depois desse livro... rs


Marina.Castro.F 27/02/2021minha estante
Um dos meus livros favoritos. Realmente imperdível !




Ladyce 03/07/2011

Uma ode ao nosso idioma
São poucos os autores de ficção que conseguem dizer muito em poucas palavras, que conseguem ser tão sucintos quanto os poetas, que conseguem contar uma história de maneira obliqua e simultaneamente clara. Mas eles existem, esses mágicos da língua, esses domadores da prosa emocional, tecedores de imagens que nos envolvem e atrelam. De vez em quando temos a chance de nos encontrarmos reféns de seus romances, de suas histórias. Acabamos validando, a cada página, a Síndrome de Estocolmo, porque presas fáceis que somos da magia de seus textos, prolongamos a qualquer custo o prazer que sentimos na leitura e evitamos o desenlace final, a chegada dos últimos parágrafos. Não somos mais os mesmos ao final da leitura, amamos o seqüestrador de momentos inebriantes, admiramos o sedutor de nossos sentidos, o raptor das nossas emoções. Foi o que me aconteceu na leitura de VERMELHO AMARGO [Cosac Naify: 2011] do escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós.

Chamar esta publicação de romance é um exagero, chamá-la de conto, peca pelo lado contrário. São quase 70, as páginas que ordenam as contemplações de um menino que acaba de entrar na escola. Não conhecemos seu nome, nem os de seus familiares. Não sabemos onde mora, nem suas brincadeiras prediletas. Mas ao acabar a leitura, compartilhamos intimamente de sua solidão. Bebemos do sofrimento sobre o qual pondera. O ponto de partida é a perda da mãe. E as meditações, centradas na imagem de um tomate, são seu testemunho sobre as mudanças na família a partir daquele momento. Como o título prenuncia, é amarga a descoberta da vida após a perda materna.

Sinestesia é a figura de linguagem que engloba a expressão VERMELHO AMARGO, uma combinação poderosa das sensações provocadas por diferentes órgãos sensoriais: vista e palato. Que esse título abençoa as memórias do menino, já deveria nos colocar de sobreaviso: a expressão poética, bela e sedutora, não consegue esconder o lado cáustico das reflexões do narrador. Da vida cotidiana aos sentimentos de perda e saudades, participamos do turbilhão emocional corrosivo de um menino sensível, deixado ao largo da vida familiar, a interpretar meramente o que o rodeia a partir dos sinais que lhe são visíveis.

Bartolomeu Campos de Queirós é considerado “um dos maiores expoentes da literatura infantojuvenil brasileira”, como anuncia a editora Cosac Naify, na sinopse desse volume. Mas não se enganem, esse não é um livro infantojuvenil. É um livro para adultos ou jovens, que não só possam se encantar com um texto rico, entremeado pelas mais diversas imagens e de perfeita retórica, como também melhor interpretado por aqueles que já desenvolveram dentro de si, pelas vicissitudes enfrentadas, um extenso rol de sentimentos, dos mais sublimes aos mais mesquinhos, com todas as nuances que lhes pertencem.

De pronto, esse volume, um ensaio meditativo, é enriquecido de maneira exemplar quando o autor persiste em manter um texto delicadamente equilibrado na junção de imagens antagônicas. O momento emocional se revela justamente no espaço deixado em branco pelas antíteses narrativas e o sentimento que elas não conseguem definir. Essa é uma leitura que requer pausa e reflexão. Há pensamentos que precisam ser digeridos antes mesmo de se passar ao parágrafo seguinte. As ponderações são de um adulto voltando-se para o seu passado de menino. Somos convidados a participar de uma recapitulação, de uma memória emocional: “Tantos pedaços de nós dormem num canto da memória, que a memória chega a esquecer-se deles.”

Há livros que nos seqüestram pela trama, que nos seduzem pelo enredo. Raras são as vezes em que é o texto, a maneira de dizer, as imagens colocadas nos envolvem de tal maneira que o argumento passa a segundo plano. Tal é o caso de VERMELHO AMARGO. Esse é um livro para ser degustado mais por sua maneira de ser, por suas imagens, por sua prosa do que pelo que retrata. Nele conseguimos viver os prazeres de uma língua bem colocada, bem armada. Uma língua poética. Fascinante. Esse é o testemunho de uma língua viva, rica, amada e amante. É uma ode ao idioma. Aproveite-a.
Malu 17/07/2011minha estante
Concordo em tudo com vc, Ladyce, e já postei no seu blog que queria muito ter escrito esta resenha! Amei!


DIRCE 22/08/2011minha estante
Hummmm...Que tentação.
Rica é essa sua resenha, Ladyce.
Tenha uma feliz semana.
abraços.


Disotelo 13/04/2021minha estante
Tinha me interessado por causa do Prêmio São Paulo, mas foi sua resenha que me convenceu a dar uma chance pra ele :)




Márcia Regina 05/02/2012

Sempre me deslumbro com a capacidade que alguns artistas têm de atingir a essência da dor e de transformar essa essência em ternura. É um livro-poema.
DIRCE 05/05/2012minha estante
OI Márcia!
Com apenas 2 frases você conseguiu me instigar. 2 frases de grande efeito.
Tenha um ótio final de semana.


Pri 27/05/2019minha estante
Verdade... é uma narrativa muito poética... avassaladora.




Belle 17/12/2014

A melhor leitura do ano
“Foi preciso deitar o vermelho sobre papel branco para bem aliviar seu amargor.” (Epígrafe).

O livro possui apenas 72 páginas de uma história densa e amarga. De cunho autobiográfico, ele relata as memórias de uma infância amarga e melancólica.

A morte nos é apresentada logo nas primeiras páginas, porém de uma maneira tão delicada e sutil, que releva que só mesmo uma criança poderia expor um assunto tão devastador de uma maneira tão singela.

A presença doce da mãe é substituída por um amargor vermelho. As mudanças na família geradas pela perda e a solidão do narrador é centrada a partir da imagem do tomate. O esforço do menino ao tentar engolir o tomate amargo reflete no leitor um nó na garganta a cada página vencida.

Esse é um livro que transforma quem o lê, impossível terminá-lo sem compartilhar a angústia e a solidão do menino e refletir acerca das relações familiares.
Amanda 17/12/2014minha estante
Fiquei curiosa


Belle 17/12/2014minha estante
Com certeza vale a pena ler, Amanda.




Ingrid 09/09/2021

Tomate
É uma história bem desenvolvida com muitas metáforas, não acredito que funcione com todo mundo, só sei que começa triste e termina triste achei muito interessante as metáforas com os tomates.
Vick 09/09/2021minha estante
O título da resenha kkkkk amei




Letícia 24/08/2011

Tudo em vermelho...
E tudo se tornou vermelho. E ele pensava que a raiva se vestia de vermelho e tudo mais.

"Cobiçava conhecer mais palavras para nomear o incômodo perpétuo instalado pela dor."


E eu cobiço conhecer mais palavras para descrever o que senti em uma leitura de pouco menos de 100 páginas e que nos deixa pensativos sobre as relações humanas, e como nomeamos ou colorimos nossa vida.

É um livro que se lê de uma "sentada" mas que você fica dias pensando sobre o que leu.


O vermelho faz isso!


Recomendo a leitura, pois é bom ler livros curtos, mas densos e que sempre nos põe a pensar.
Renata CCS 21/10/2013minha estante
Você me convenceu a ler com poucas palavras.




Alexandre Melo @livroegeek 13/02/2017

Bela prosa poética
Bartolomeu Campos de Queirós conversa poeticamente conosco em um texto surpreendente (e belas frases de efeito) nesse livro onde um menino pobre conta por meio de alegorias a um tomate fatiado por sua madrasta, o sofrimento familiar, a saudade de sua mãe, e sua memoria afetiva. Em poucas páginas o autor consegue nos tocar com o olhar sensível do garoto.
Helena 27/07/2017minha estante
Poderia me explicar o final? terminei de ler e não entendi o final




jota 30/12/2015

Vermelho é a cor da amargura?
Nascida num vilarejo mineiro essa prosa tem tamanha voltagem poética que se torna universal. No meio do caminho de Drummond tinha uma pedra; aqui topamos com um infante diariamente a se (re)virar frente a um vermelho tomate fatiado que lhe cansava a vista e amargava a vida.

Lido de uma única sentada em 29/12/2015.
JeffersonCevada 30/12/2015minha estante
amei esse livro!




Rapha Brian 11/12/2011

Contraste entre mãe e madrasta
MEU BLOG, ENTREM E CONHEÇAM MINHAS HISTÓRIAS: HTTP://WWW.RAPHAELBRIAN.BLOGSPOT.COM

Bartolomeu Campos de Queirós, em sua mais recente obra, Vermelho Amargo, volta à sua infância e expressa através de uma narrativa com vários recursos poéticos, o sofrimento de ser uma criança sozinha e sem o amor da mãe.

Em seu livro, Bartolomeu mostra sua família, composta por ele, seus irmãos, a madrasta e o pai. O irmão que comia vidro, a irmã obstinada por bordar em ponto cruz. O pai, por sua vez, é mostrado com distanciamento e, sempre, como a figura marcada pelo alcoolismo. Já a madrasta, é descrita como alguém que despeja toda sua peçonha em seus gestos econômicos e, falta de amor, estabelecendo-se assim, um contraste com a mãe, que é representada pela extrema delicadeza e amor em que administrava os seus atos. Nos seguintes trechos pode se perceber essa relação:

[1] “Oito. A madrasta retalhava um tomate em fatias, assim finas capaz de envenenar a todos. Era possível entrever o arroz branco do outro lado do tomate, tamanha a sua transparência. Com a saudade evaporando pelos olhos, eu insistia em justificar a economia que administrava seus gestos. Afiando a faca no cimento frio da pia, ela cortava o tomate vermelho, sanguíneo, maduro como se degolasse um de nós. Seis.” (pg09)

[2] “Engolia o tomate imaginando ser ambrosia ou claras em neve, batidas com açúcar e nadando num de leite, como praticava minha mãe__ Ilha flutuante__ com as mãos do amor.” (pg10)

Em Vermelho Amargo, o narrador-menino, rememora sua infância e, ao mesmo tempo, participa da história. A “falta de amor”, elemento que perpassa toda sua obra, evidencia o contraste, como já dito, entre madrasta e mãe.

Como mostrado no primeiro trecho acima, a madrasta em posse do fruto tomate (maior metáfora do livro) exerce sob o ato de fatiá-lo, gestos finos, precisos, sem a delicadeza que uma mãe teria ao fazê-lo.

Essa expressão é mostrada pelo autor através da maneira em que ele constrói seu texto; por exemplo, as palavras: fatias, finas, afiando, faca e frio. Todas elas remetem ao leitor, através da sonoridade da pronúncia, um som fino. Ao pronunciá-las em voz alta, não é necessário abrir muito a boca para emitir seus sons, já que o mesmo sai de maneira afiada, com a boca estreita, se igualando ao sentido dos gestos da madrasta, hostis, como uma lâmina.O trecho, incluso na parte final da primeira citação, comprova a idéia abordada nesse parágrafo, “... ela cortava o tomate vermelho, sanguíneo, maduro como se degolasse um de nós. Seis.”

Não deixando de apresentar o contraste estabelecido entre a mãe e a madrasta, destacarei a seguir outros momentos da obra que, também, reitera a imagem de faca, lâmina, vidro ou algo capaz de perfurar e machucar:

“Havia na cidade a madrasta, a faca, o tomate e o fantasma. A mãe morta ressuscitava das louças, das flores, dos armários, das cadeiras, das panelas, das manchas dos retratos retirados das paredes, das gargantas das galinhas.” (pg15/16)

“Ela decapitava um tomate para cada refeição.” (pg23)

“Estacionado na porta do homem da tesoura, reparava seus cortes. Tudo eu olhava devagar para bem imaginar. Sua mão firme retalhava os caminhos riscados sobre a casimira ou linho.” (pg29)

“O irmão, degustador de vidro, sabia ler.” (pg43)

“Ele pegou o lápis, reparou sua ponta e me disse: “É preciso afiar bema grafite.Só com a ponta do lápis exageradamente fina se pode fazer a palavra tomate”. Assustei-me. Para escrever a palavra tomate meu irmão necessitava de um punhal, concluí.” (pg44)

“Meu pai se encostava na pia, depois de afiar a navalha.” (pg45)

De acordo com os trechos explicitados acima, pode-se notar que essa imagem é trabalhada em todo o livro. Tanto a lâmina, a faca, o vidro, o punhal, a ponta, a grafite exageradamente fina e a tesoura, são materias que perfuram, cortam, exercem violência, como uma ferida. Causam uma ruptura.

Ao enxergar todos esses elementos, às vezes metafóricos, pode-se ter uma idéia de acordo com o que o autor apresenta, por exemplo, a ruptura causada pela morte de sua mãe, o distanciamento do garoto com o mundo, as violências das relações humanas e suas representações.

Voltando a analisar as representações de mãe/madrasta, agora com o foco na segunda citação do início do texto, pode-se perceber que, ao contrário da madrasta, a mãe é referida com demasiada delicadeza, tanto é que, a própria escolha das lembranças dos doces, ambrosia e claras em neve (batidas com açúcar), são importantes recursos que compõem a intenção do autor.

A imagem das “Claras em Neve”, realmente, lembra uma ilha (podendo estar navegando em um mar de leite), mas, também pode remeter, da mesma maneira,à nuvens, dando a idéia de que, em qualquer ângulo que a imagem do doce for vista, ou, até mesmo, em outras perspectivas, sempre irá geraruma imagem que transmite leveza.

Como se não bastasse, o elemento “açúcar”, (contrário de amargo), é acrescentado à composição do trecho, trazendo a tona o quão oposta, às amarguras da vida e às atitudes da madrasta a mãe era. Pode-se considerar também, o antônimo que a palavra se transforma ao ser comparada com o título do próprio livro.

Já o outro doce, “Ambrosia”, de acordo com a mitologia grega, era considerado como um doce divinal, em que, apenas os deuses do Olimpo podiam saboreá-lo, sendo ele vetado aos mortais. Conta a história que, quando os deuses o ofereciam a algum humano, este, aoexperimentá-lo, sentia uma sensação de extrema felicidade. Há também, outra vertente desse mito que, conta que o mortal que o comesse passaria a ser imortal.

Ao olhar por esse prisma, talvez, o autor quisesse passar a imagem de algo capaz de retirá-lo da tristeza, como diz a mitologia. Ou, quem sabe, expressar a tentativa, subconsciente, da imortalidade. O desejo que sua mão não partisse.

A seguir, apresento mais dois trechos que reafirmam a diferença entre as duas, mãe e madrasta:

“Antes, minha mãe, com muito afago, fatiava o tomate em cruz, adivinhando os gomos que os olhos não desvendavam, mas a imaginação alcançava. Isso, depois de banhá-los em água pura e enxugá-los em pano de prato alvejado, puxando se brilho para o lado do sol. Cortados em cruzes eles se transfiguravam em pequenas embarcações ancoradas na baía da travessa.” (pg14/15)

“Ela decapitava um tomate para cada refeição. Isso depois de tomar do martelo e espancar, com a força de seus músculos, os bifes. Batia forte tornando possível escutar o ruído na rua. O martelar violento avisava aos vizinhos que comeríamos carne no almoço. Eu padecia pelo medo do martelo e a violência da mulher ao açoitar a carne.” (pg23)

Para finalizar, após a análise concernente à relação contrastiva entre as duas, percebe-se que o autor em sua narrativa memorialística, também utiliza recursos poéticos como, rimas, “A felicidade nos era interditada. Toda tristeza prenunciava uma morte que não chegava. Dormi e ao despertar-me já amava.” e, ritmo, “Dói. Dói muito. Dói pelo corpo inteiro.”, que, no caso, se dá através da gradação.

Em uma prosa destacam-se três elementos, sujeitos, tempos, e espaços ficcionais. Os sujeitos, claro, além do próprio narrador menino que revive sua história, engloba a família, incluindo pai, mãe, madrasta, irmãos e alguns outros personagens secundários. Referente aos temposdestacam-se todas as ações que estão inseridas na obra, em um determinado espaço.

Então, o livro pode ser considerado como prosa poética, em virtude dos elementos enumerados acima, em parceria com as várias palavras e expressões líricas, (às vezes característica do poema), e aos parágrafos curtos com várias metáforas.

(Queirós, Bartolomeu C. de. Vermelho Amargo. Cosac Naify, 2011 )

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Fernana 03/03/2024

Vermelho amargo talvez tenha sido uma experiência profunda para olhar pra dentro de si, o momento não se faz perceber mas acontece, e de repente você já perdeu dois três anos, já ganhou novas cicatrizes, ja cresceu. A infância pode ser a esponja mais pura onde se concentra suas primeiras e mais profundas percepções da vida. ?Uma frase muda o fim do filme? já dizia alguém, cuja miséria já havia lhe acometido também. É possível que tanta tristeza caiba dentro de um espaço tão pequeno? Me pergunto se alguém está se sentindo tão triste assim agora, nesse momento, dividindo comigo o mesmo tempo e sentimento.
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Thaís Vitale (@LiteraturaNews) 15/07/2013

A prosa poética do autor emociona o leitor. A dor e a tristeza do narrador são expressas de modo belo por Bartolomeu Campos de Queirós. Livro lindo e tocante!
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Paula 07/09/2013

Ausência
Ressaca literária. É isso o que sinto agora, após a leitura breve e impactante de Vermelho Amargo. Não pretendo aqui resenhar, visto que isso já foi muito bem feito por vários usuários do skoob, especialmente a Ladyce (que resenha!). Ainda assim, e sem desmerecer ninguém, creio ser impossível fazer qualquer resumo do que é esta obra. Digo isso porque não há um trecho que a simplifique, exemplifique ou mesmo um trecho que se sobressaia perante os demais.
Daqueles livros saborosos em seu dissabor. Precisei de um tempo para refletir sobre. Reli trechos, assimilei parágrafos, digeri tantos outros. E me veio só o silêncio, com toda a sua ausência. Sim, ausência seria a palavra que mais chega perto do que senti durante sua leitura. Um vazio.
E depois o choro. Chorei copiosamente ao fim deste livro. E o mais curioso: não sei bem o motivo. O fato é um só: é um Senhor Livro. E Bartolomeu Campos de Queirós um escritor memorável.
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