Pedro Nabuco 25/03/2019
"aos povos nunca os moveram senão os poetas"
(há spoilers no decorrer do texto)
por que Cercas nos conta essa história? são páginas que levam a pensar na memória como ponte entre a vida e a morte. a todo tempo Cercas duvida da realidade das lembranças, do quanto de verosímil há quando contamos histórias. quanta verdade existe nos tomos que contam uma guerra, uma pátria? sobretudo, o que fica escondido, detrás dessa história, o que "é" a história para além do contado, é uma verdade ou um misto incerto de imaginação e lembrança? são questões que o livro suscitou-me.
Cercas conversa conosco o tempo todo, e é divertido dialogar com um escritor fracassado um tanto cético, um tanto azedo pela vida e ainda assim, um bocado jovem e desejoso. os personagens sobre os quais, o autor/personagem escreve em seu livro são extremamente interessantes e um tanto absurdos. Rafael Sanchez Mázas é real, foi um ideólogo da Falange espanhola, um movimento de direita que deu base intelectual ao surgimento do facismo na Espanha dando lenha à guerra civil de 1936. Miralles é um comunista espanhol que lutou durante quase 8 anos seguidos, emedando a guerra civil espanhola com a segunda guerra mundial, o que lhe rendeu metade do corpo coberto de cicatrizes e uma pensão do governo francês por ter lutado na legião estrangeira desse país. Miralles era um soldado republicano que estava presente no dia do fuzilamento de Sanchez Mazas, já no final da guerra civil, num momento em que este era prisioneiro, do qual ele absurdamente escapou com vida fugindo para um bosque quando os tiros começaram.no bosque um soldado republicano lhe encontra, olha em seu olhos com a arma apontada para ele, o reconhece, e quando chega o grito perguntando se há alguém por lá, diz "por aqui não há ninguém" e vai embora. Cercas passa o livro querendo descobrir porque o soldado simplesmente seguiu em frente, como se esse momento guardasse um segredo, algo metafísico, uma profunda verdade da natureza humana. e quer saber se este soldado é Miralles.
Roberto Bolaño, escritor chileno, foi quem contou a Cercas sobre a existência de Miralles, em conversa com Cercas quando esse busca saber se Miralles ainda está vivo para descobrir se ele foi o dito soldado, sugere que ele simplesmente invente que o dito soldado é Miralles, porque às histórias não interessam que sejam verdadeiras ou não, interessa o que sente o leitor, único juiz, ao lê-las. Cercas, porém, parece preso a um dilema ético/filosófico sobre a necessidade da verdade, também, sobre si próprio enquanto escritor.
no fim, Cercas escreve, e o faz de forma brilhante. Sanchez Mazas queria defender, com o facismo, uma espanha ideal, feita de ordem e hierarquia, mais do que o interesse material burguês, lhe interessava preservar seu ideal, seu Paraíso Perdido, cristão, tradicionalista, um local para cavalheiros como ele, ameaçado por homens como Miralles, um homem das massas, feito comunista mais por afetos do que por ideias, jogado na guerra como tantos outros, lutando durante quase oito anos, em diversos fronts. a guerra que um inflamou em poesias mas da qual nunca participou ativamente levou outros a lutá-las e a estes que lutaram, a guerra nada teve de glorioso, além de dor e mortos. mas, de algum modo, venceram, mais que os soldados nacionalistas, as histórias humanas. mais uma vez, e como em todas as guerras, venceu a poesia, que continua a mover-nos, ainda quando feita de lembranças, ainda quando a poesia tenha sido escrito por um grandessíssimo filha da puta como o facista Rafael Sanchez Mazas "de resto, Sánchez Mazas é um bom poeta; um poeta menor, quero dizer, que é quase tudo a que pode aspirar um bom poeta. Seus versos tem uma corda só, humilde e velhíssima, monótona e um pouco sentimental, mas Sánchez Mazas a toca com maestria, arrancando daí uma música limpa, natural e prosaica, que só canta a melancolia agridoce do tempo que foge e, em sua fuga, arrasta a ordem e a segurança hierárquica de um mundo abolido que, precisamente por ter sido abolido, é também um mundo inventado e impossível, quase sempre equivalente ao mundo impossível e inventado do Paraíso." pág. 80)"
em uma entrevista que li de Roberto Bolaño falando sobre Cercas, ele me pareceu sugerir que Cercas tinha certa intenção de unir esquerda e direita em sua literatura, algo que desaprovava. não é esta a impressão que me passa "Soldados de Salamina", porém, Miralles é uma resposta a Sanchez Mazas, dentro da própria construção da narrativa, em dado momento Cercas conclui um livro sobre a vida de Mazas, mas falta algo, este algo é Miralles, o fruto das poesias de Mazas que sonhavam o mundo perfeito é o caos da guerra para um homem qualquer, que lutou por 8 anos seguidos por uma civilização que não se lembrará dele. um reage ao outro, humanos, igualmente. da aspiração, sobretudo intelectual, por ordem e unidade de um homem culto surge a resposta, sobretudo física, no meio do caos da guerra de um homem que também sonha, que dança pasodobles mas que, em contraposição ao sonho poético idílico de Mazas, vive a realidade violenta fruto desse sonho e dentro desta realidade ele escolhe ir em frente " sem saber muito bem para onde vai nem com quem vai, nem por que vai, sem se importar muito desde que seja para a frente, para a frente, para a frente, sempre para a frente. (pág. 213")