zeguilhermespp 26/04/2023
Mortos-vivos descortinam a funesta ditadura militar
Incidente em Antares é o último romance do gigante Erico Verissimo, um dos maiores escritores brasileiros do século XX. Publicado em 1971, em meio à euforia do ?milagre econômico? de Médici, o livro é um libelo contra a ditadura militar e uma sátira profunda das classes dominantes brasileiras.
O livro é dividido em duas partes. Na primeira, ?Antares?, Verissimo nos conduz através da história desta cidadezinha fictícia no interior do Rio Grande do Sul, margeando o Rio Uruguai, perto de São Borja. Aliás, também através da paleontologia, já que o ponto de partida são os fósseis da megafauna que caminhava sob Antares há milhares de anos. A narração contudo não se preocupa em visitar as sociedades indígenas ou a invasão dos colonos (o que daria uma grande história, aliás, visto que se trata da região dos Sete Povos das Missões). Da pré-história pulamos para o século XIX, quando o mando absoluto de Francisco Vacariano, caudilho local, é contestado pela chegada de um rival, Anacleto Campolargo. Daí acompanhamos a rixa atávica entre os Vacarianos e os Campolargos, ao mesmo tempo em que Antares vive a chegada da modernização conservadora na passagem do século. A parcela final dessa primeira parte me enfadou um pouco por se tratar de uma narrativa longa sobre fatos políticos da Quarta República (1946-1964), que são meus velhos conhecidos, apesar do humor característico de Verissimo ter ajudado em muito.
A segunda parte, ?O incidente?, é quase inteiramente focada na sexta-feira 13 de dezembro de 1963. Por ocasião de uma greve geral, de que participaram os coveiros, sete cadáveres insepultos levantam de seus caixões. No afã de convencer a população, dividida entre grevistas e as ?classes produtoras?, da necessidade imperiosa de lhes darem um enterro digno e cristão, os defuntos acabam descortinando toda a podridão moral e as contradições incociliáveis da sociedade e da burguesia antarenses, microcosmos do Brasil. O incidente é um exemplo de realismo mágico brilhantemente inscrito numa tradição crítica da literatura latinoamericana, que se vale do fantástico para descortinar a cruel realidade deste continente tão acostumado aos absurdos cotidianos.
Em Incidente em Antares, Verissimo prova que é a matéria de um escritor é o seu tempo. Sem fugir ao compromisso social, o autor oferece, nesta primeira história nacional de zumbis, uma crítica mordaz à hipocrisia da classe dominante, à violência no campo, ao clero conservador e à ditadura militar; mas também, e sobretudo, uma defesa apaixonada da liberdade.