spoiler visualizarDarkpookie 28/05/2020
Comentários e trechos
Uma obra maravilhosa. A história gira em torno do narrador e protagonista Riobaldo, um jagunço. Como qualquer aventura, existem várias reviravoltas e descobertas, mas o que mais me impressionou foi a forma como a história é contada: é quase como se você estivesse sentado com a personagem e tendo uma conversa, uma série de casos com um objetivo final. A narração é direta e sem capítulos durante as mais de 600 páginas, uma verdadeira travessia. Outro ponto que tomou meu coração enquanto eu lia foi o teor humano da obra, com todas as divagações sobre a vida e os sentimentos quase não cabendo em palavras. Definitivamente, uma das melhores obras que já li.
A seguir deixo vários trechos que gostei, sejam frases bonitas ou ideias/pensamentos do personagem e talvez algumas passagens importantes (leia-se SPOILER):
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“Explico ao senhor! o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem ― ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! ― é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco ― é alta mercê que me faz! e pedir posso, encarecido. Este caso ― por estúrdio que me vejam ― é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela ― já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até! Nas crianças ― eu digo. Pois não é ditado! menino ― trem do diabo? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemunho...”
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“Se sabe? E o demo ― que é só assim o significado dum azougue maligno ― tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo.”
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“Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo a noção ― proclamar por uma vez, artes assembleias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam tranquilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?!
Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente ― dá susto se saber ― e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons... De sorte que carece de se escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida só de religião só.”
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“Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo.”
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“Informação que pergunto: mesmo no Céu, fim de fim, como é que a alma vence se esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no recebido e no dado? A como? O senhor sabe: há coisas de medonhas demais, tem. Dor do corpo e dor da ideia marcam forte, tão forte como o todo amor e raiva de ódio.”
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“Compadre meu Quelemém nunca fala vazio, não subtrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio ― essa é que é a regra do rei!”
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“O senhor... Mire veja! o mais importante e bonito, do mundo, é isto! que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas ― mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. E o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa! o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro ― dá gosto! A força dele, quando quer ― moço! ― me dá o medo pavor! Deus vem vindo! ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho ― assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza.”
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“Relembro Diadorim. Minha mulher que não me ouça. Moço! toda saudade é uma espécie de velhice.”
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“Confiança ― o senhor sabe ― não se tira das coisas feitas ou perfeitas! ela rodeia é o quente da pessoa.”
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“Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho... ― ciente me respondeu.”
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“E aquela gente gritava, exigiam saúde expedita, rezavam alto, discutiam uns com outros, desesperavam de fé sem virtude ― requeriam era sarar, não desejavam Céu nenhum. Vendo assaz, se espantava da seriedade do mundo para caber o que não se quer. Será acerto que os aleijões e feiezas estejam bem convenientemente repartidos, nos recantos dos lugares. Se não, se perdia qualquer coragem. O sertão está cheio desses. Só quando se jornadeia de jagunço, no teso das marchas, praxe de ir em movimento, não se nota tanto: o estatuto de misérias e enfermidades. Guerra diverte ― o demo acha.”
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“Refiro ao senhor! um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale do Arassuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança! sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. E o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar ― é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dôr.”
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“Dôr não dói até em criancinhas e bichos, e nos dôidos ― não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demónio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver ― a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim! mas um fim com depois dele a gente tudo vendo.”
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“O senhor deve de ficar prevenido! esse povo diverte por demais com a baboseira, dum traque de jumento formam tufão de ventania. Por gosto de rebuliço. Querem-porque querem inventar maravilhas glorionhas, depois eles mesmos acabam temendo e crendo. Parece que todo o mundo carece disso.”
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“Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as coisas, não são de verdade! E de que é que, a miúde, a gente adverte incertas saudades? Será que, nós todos, as nossas almas já vendemos?”
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“O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.”
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“Ao que, digo ao senhor, pergunto! em sua vida é assim? Na minha, agora é que vejo, as coisas importantes, todas, em caso curto de acaso foi que se conseguiram ― pelo pulo fino de sem ver se dar ― a sorte momenteira, por cabelo por um fio, um clim de clina de cavalo. Ah, e se não fosse, cada acaso, não tivesse sido, qual é então que teria sido o meu destino seguinte? Coisa vã, que não conforma respostas. As vezes essa ideia me põe susto.”
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“Tem dó não. São os danados de façanhosos... Ah, era. Disso eu sabia. Mas como ia não ter pena? O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente.”
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“Mire veja o senhor tudo o que na vida se estorva, razão de pressentimentos.”
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“Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.”
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“Tudo, naquele tempo, e de cada banda que eu fosse, eram pessoas matando e morrendo, vivendo numa fúria firme, numa certeza, e eu não pertencia a razão nenhuma, não guardava fé e nem fazia parte. Abalado desse tanto, transtornei um imaginar. Só não quis arrependimento! porque aquilo sempre era começo, e descoroçoamento era modo-de-matéria que eu já tinha aprendido a protelar.”
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“Desculpa me dê o senhor, sei que estou falando demais, dos lados. Resvalo. Assim é que a velhice faz. Também, o que é que vale e o que é que não vale? Tudo. Mire veja! sabe por que é que eu não purgo remorso? Acho que o que não deixa é a minha boa memória. A luzinha dos santos-arrependidos se acende é no escuro. Mas, eu, lembro de tudo. Teve grandes ocasiões em que eu não podia proceder mal, aindas que quisesse. Por que? Deus vem, guia a gente por uma légua, depois larga. Então, tudo resta pior do que era antes. Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas pêrdas e colheitas. Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. Ao quando bem não me entender, me espere.”
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“Fui louvado e dito valedor, certo nas ideias. Ao senhor confesso, desmedi satisfação, no ouvir aquilo ― que a assoprada na vaidade é a alegria que dá chama mais depressa e mais a ar.”
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“Mas, de feito, eu carecia de sozinho ficar. Nem a pessoa especial do Reinaldo não me ajudava. Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre nas estreitas horas ― isso procuro. O Reinaldo comigo par a par, e a tristeza do medo me eivava de a ele não dar valor. Homem como eu, tristeza perto de pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero.
Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado. Fui indo.”
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“Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor. Eu vinha pensando, feito toda alegria em brados pede: pensando por prolongar. Como toda alegria, no mesmo do momento, abre saudade.”
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“Teve um instante, bambeei bem. Foi mesmo aquela vez? Foi outra? Alguma, foi; me alembro. Meu corpo gostava de Diadorim. Estendi a mão, para suas formas; mas, quando ia, bobamente, ele me olhou ― os olhos dele não me deixaram. Diadorim, sério, testalto. Tive um gelo. Só os olhos negavam. Vi ― ele mesmo não percebeu nada. Mas, nem eu; eu tinha percebido? Eu estava me sabendo? Meu corpo gostava do corpo dele, na sala do teatro. Maiormente. As tristezas ao redor de nós, como quando carrega para toda chuva. Eu podia pôr os braços na testa, ficar assim, lôrpa, sem encaminhamento nenhum. Que é que queria?”
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“Quanto pior mais baixo se caíu, maismente um carece próprio de se respeitar. De mim, toda mentira aceito. O senhor não é igual? Nós todos. Mas eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão de fuga.
As razões de não ser. O que foi que eu pensei? Nas terríveis dificuldades; certamente, meiamente. Como ia poder me distanciar dali, daquele ermo jaibão, em enormes voltas e caminhadas, aventurando, aventurando? Acho que eu não tinha conciso medo dos perigos: o que eu descosturava era medo de errar ― de ir cair na boca dos perigos por minha culpa. Hoje, sei: medo meditado ― foi isto. Medo de errar. Sempre tive. Medo de errar é que é a minha paciência. Mal.”
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“Do ódio, sendo. Acho que, às vezes, é até com ajuda do ódio que se tem a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta mais forte. Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe.”
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“E, de repente, pressenti que alguém tinha vindo por detrás de mim, me vigiava. Diadorim, fosse? Não virei a cara para ver. Não tive receio. Nunca posso ter medo das pessoas de quem eu gosto. Digo. Esperei mais, outro tempo. Daí, vim voltando. Mas lá não estava pessoa nenhuma, entre claridade e sombras. Ilusão minha, a fantasiação.”
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“De perto, senti a respiração dele, remissa e delicada. Eu aí gostava dele. Não fosse um, como eu, disse a Deus que esse ente eu abraçava e beijava.”
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“Hoje, eu penso, o senhor sabe: acho que o sentir da gente volteia, mas em certos modos, rodando em si mas por regras. O prazer muito vira medo, o medo vai vira ódio, o ódio vira esses desesperos? ― desespero é bom que vire a maior tristeza, constante então para o um amor ― quanta saudade... ―; aí, outra esperança já vem... Mas, a brasinha de tudo, é só o mesmo carvão só.”
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“Mas, na ocasião, me lembrei dum conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é.”
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“Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago... ― foi o que pensei, na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dór-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia.”
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“Para ódio e amor que dói, amanhã não é consolo.”
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“Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.”
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“Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”
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“De homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o senhor tenha todo medo! O que mais digo: convém nunca a gente entrar no meio de pessoas muito diferentes da gente. Mesmo que maldade própria não tenham, eles estão com vida cerrada no costume de si, o senhor é de externos, no sutil o senhor sofre perigos. Tem muitos recantos de muita pele de gente. Aprendi dos antigos. O que assenta justo é cada um fugir do que bem não se pertence. Parar o bom longe do ruim, o são longe do doente, o vivo longe do morto, o frio longe do quente, o rico longe do pobre. O senhor não descuide desse regulamento, e com as suas duas mãos o senhor puxe a rédea.”
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“Duvidava dos fojos do mundo. E por que era que há de haver no mundo tantas qualidades de pessoas ― uns já finos de sentir e proceder, acomodados na vida, tão perto de outros, que nem sabem de seu querer, nem da razão bruta do que por necessidades fazem e desfazem. Por que? Por sustos, para vigiação sem descanso, por castigos? E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares mís e centos milhentos, vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades. Como é que iam saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade, mesmo que quisessem ser? Nem achavam capacidade disso. Haviam de querer usufruir depressa de todas as coisas boas que vissem, haviam de uivar e desatinar.”
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“Nem me diga o senhor que não ― aí foi que eu pensei o inferno feio deste mundo! que nele não se pode ver a força carregando nas costas a justiça, e o alto poder existindo só para os braços da maior bondade. Isso foi o que eu pensei, muito redoído, no estufo do calor vingante.”
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“Aqueles, ali, eram com efeito os amigos bondosos, se ajudando uns aos outros com sinceridade nos obséquios e arriscadas garantias, mesmo não refugando a sacrifícios para socorros. Mas, no fato, por alguma ordem política, de se dar fogo contra o desamparo de um arraial, de outra gente, gente como nós, com madrinhas e mães ― eles achavam questão natural, que podiam ir salientemente cumprir, por obediência saudável e regra de se espreguiçar bem. O horror que me deu ― o senhor me entende? Eu tinha medo de homem humano.”
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“O senhor entende, o que conto assim é resumo; pois, no estado do viver, as coisas vão enqueridas com muita astúcia! um dia é todo para a esperança, o seguinte para a desconsolação. Mas eu achei, aí, a possibilidade capaz, a razão. A razão maior, era uma. O senhor não quer, o senhor não está querendo saber?”
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“O senhor, mire e veja, o senhor! a verdade instantânea dum fato, a gente vai departir, e ninguém crê. Acham que é um falso narrar. Agora, eu, eu sei como tudo é! as coisas que acontecem, é porque já estavam ficadas prontas, noutro ar, no sabugo da unha; e com efeito tudo é grátis quando sucede, no reles do momento. Assim. Arte que virei chefe. Assim exato é que foi, juro ao senhor. Outros é que contam de outra maneira.”
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“Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa ― a inteira ― cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver ― e essa pauta cada um tem ― mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa consequência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador ― sua parte, que antes já foi inventada, num papel...”
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“E procurar encontrar aquele caminho certo, eu quis, forcejei; só que fui demais, ou que cacei errado. Miséria em minha mão. Mas minha alma tem de ser de Deus! se não, como é que ela podia ser minha? O senhor reza comigo. A qualquer oração. Olhe! tudo o que não é oração, é maluqueira... Então, não sei se vendi? Digo ao senhor! meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor! o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor! então, a alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador...
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“o dia vindo depois da noite ― esse é o motivo dos passarinhos...”
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“E, o que não existe de se ver, tem força completa demais, em certas ocasiões.”
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“O que eu desentendia nela era aquela suave calma, tão feroz; que seria aferrada em esperar; essa capacidade. Se o ódio, só, era que dava a ela certeza de si, o ódio então era bom, na razão desse sentido! que às vezes é feito uma esperança já completada. Deus que dele me livrasse!”
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“Dói sempre na gente, alguma vez, todo amor achável, que algum dia se desprezou... Mas, como jagunços, que se era, a gente rompeu adiante, com bons cavalos novos para retrôco.”
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“Quem assim viemos. Mas, conto ao senhor as coisas, não conto o tempo vazio, que se gastou. E glose! manter firme uma opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão grande, é dificultoso. Vai viagens imensas. O senhor faça o que queira ou o que não queira ― o senhor toda-a-vida não pode tirar os pés! que há-de estar sempre em cima do sertão. O senhor não creia na quietação do ar. Porque o sertão se sabe só por alto. Mas, ou ele ajuda, com enorme poder, ou é traiçoeiro muito desastroso. O senhor...”
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“Com trovoo. Trovoadão nos Gerais, a rôr, a rodo... Dali de lá, eu podia voltar, não podia? Ou será que não podia, não? Bambas asas, me não sei. Bambas asas... Sei ou o senhor sabe? Lei é asada é para as estrelas. Quem sabe, tudo o que já está escrito tem constante reforma ― mas que a gente não sabe em que rumo está ― em bem ou mal, todo-o-tempo reformando?”
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“Deixei meu corpo querer Diadorim; minha alma? Eu tinha recordação do cheiro dele. Mesmo no escuro, assim, eu tinha aquele fino das feições, que eu não podia divulgar, mas lembrava, referido, na fantasia da ideia. Diadorim ― mesmo o bravo guerreiro ― ele era para tanto carinho: minha repentina vontade era beijar aquele perfume no pescoço: a lá, aonde se acabava e remansava a dureza do queixo, do rosto... Beleza ― o que é? E o senhor mejure! Beleza, o formato do rosto de um: e que para outro pode ser decreto, é, para destino destinar... E eu tinha de gostar tramadamente assim, de Diadorim, e calar qualquer palavra. Ele fosse uma mulher, e à-alta e desprezadora que sendo, eu me encorajava: no dizer paixão e no fazer ― pegava, diminuía: ela no meio de meus braços! Mas, dois guerreiros, como é, como iam poder se gostar, mesmo em singela conversação ― por detrás de tantos brios e armas? Mais em antes se matar, em luta, um o outro. E tudo impossível. Três-tantos impossível, que eu descuidei, e falei: ― ...Meu bem, estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor de seus olhos... ―; o disse, vagável num esquecimento, assim como estivesse pensando somente, modo se diz um verso. Diadorim se pôs pra trás, só assustado. ― O senhor não fala sério! ― ele rompeu e disse, se desprazendo. O senhor ― que ele disse. Riu mamente. Arrepio como recaí em mim, furioso com meu patetear. ― Não te ofendo, Mano. Sei que tu é corajoso... ― eu disfarcei, afetando que tinha sido brinca de zombarias, recompondo o significado. Aí, e levantei, convidei para se andar. Eu queria airar um tanto. Diadorim me acompanhou.”
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“O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos... Viver ― não é? ― é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração?”
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“Como vou contar, e o senhor sentir em meu estado? O senhor sobrenasceu lá? O senhor mordeu aquilo? O senhor conheceu Diadorim, meu senhor?!... Ah, o senhor pensa que morte é choro e sofisma ― terra funda e ossos quietos... O senhor havia de conceber alguém aurorear de todo amor e morrer como só para um. O senhor devia de ver homens à mão-tente se matando a crer, com babas raivas! Ou a arte de um! tá-tá, tiro ― e o outro vir na fumaça, de à-faca, de repelo! quando o que já defunto era quem mais matava... O senhor... Me dê um silêncio. Eu vou contar.”
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“E, o pobre de mim, minha tristeza me atrasava, consumido. Eu não tinha competência de querer viver, tão acabadiço, até o cumprimento de respirar me sacava. E, Diadorim, às vezes conheci que a saudade dele não me desse repouso; nem o nele imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, tinha negado em mim aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga falseada; e o amor, e a pessoa dela, mesma, ela tinha me negado. Para quê eu ia conseguir viver? Mas o amor de minha Otacília também se aumentava, aos bêrços primeiro, esboço de devagar. Era.”
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“Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.”