spoiler visualizarIsa Beneti 07/07/2020
Uma travessia única na vida de um leitor
Um monólogo ou um diálogo? Português moderno ou arcaico? Romance regionalista ou universal? Houve pacto com o diabo ou não? Comecei a epopéia de Guimarães Rosa com inúmeras questões em mente. E que começo difícil, hein. Atravessar esse início é realmente um obstáculo, mas se há uma coisa que esse romance ensina aos leitores que o enfrentam é: carece de ter coragem para passar pelas travessias da vida e é necessário aproveitá-las. Mas, mesmo após atravessar todo o livro, percebi que nem metade das perguntas iniciais haviam sido respondidas.
Afinal, esse é um verdadeiro exemplo de um CLÁSSICO da literatura e provavelmente é o meu mais novo livro de cabeceira, pois, não importa quantas vezes você o releia, sempre há algo a mais para refletir e aprender com ele. "Grande Sertão" é uma travessia sem fim e nunca terminará de dizer o que tem a dizer (assim como definido por Ítalo Calvino). Além disso, um dos temas mais trabalhados no romance é a "mistura da vida" (nada é certo. No preto existe branco, no bom existe mal, não há delimitações certas), e essa mistura está presente em todos os aspectos do livro: em sua linguagem, em seu tipo de narrativa, em suas personagens, no pensamento e no comportamento do narrador-protagonista Riobaldo...
A duplicidade de Riobaldo foi um dos aspectos do livro que mais me levaram a refletir. O protagonista nunca se sentiu totalmente parte da "jagunçagem" do sertão, pois ao mesmo tempo que era um bom atirador, era também um intelectual (Riobaldo era de fato muito inteligente, visto que questionava as coisas ao seu redor, a sua condição e as autoridades). Procurando acabar com essa "crise de identidade" e tornar-se um jagunço completo para derrotar Hermógenes, o pactário, que havia matado Joca Ramiro, Riobaldo recorre ao pacto com o demo.O pacto em si e a existência do diabo (dois grandes assuntos do livro) também são aspectos afetados pela "mistura" do romance, pois não se sabe ao certo se o pacto ocorreu nem se o diabo existe (a conclusão final do narrador é que NÃO: o mal existe apenas dentro do homem e em suas ações, mas não existe nenhum "diabo").
Essa é uma das inúmeras discussões metafísicas universais que fazem com que o romance, apesar de ter o cenário limitado ao sertão dos Gerais (MG, BA e GO), transcenda o limite do "regionalismo", tornando-se universal (o sertão é o mundo, é um sertão metafísico: "O sertão é dentro da gente"). Além disso, essas discussões enriquecem o texto com um caráter filosófico, poético e lírico de uma maneira simplesmente fantástica... E todo esse caráter não poderia ser agregado ao texto se não fosse pelo uso extraordinário da linguagem!
Ah, a linguagem! Que coisa mais bela... E CONFUSA, não posso negar. Guimarães Rosa explora a oralidade da narrativa usando e abusando de diversos neologismos, da junção de palavras, de onomatopeias e de expressões regionais mineiras. O modo como o autor monta e desmonta as palavras do português brasileiro faz com que elas consigam expressar muito mais do que conseguiriam normalmente, o que é muito belo.
É por meio dessa linguagem que Guimarães consegue abordar de maneira grandiosa temas importantes como o amor de Riobaldo pelo filho de Joca Ramiro (Diadorim/Reinaldo), o mais corajoso e o mais "homem" entre os jagunços, que após a sua morte tem sua verdadeira identidade feminina revelada.
O início desse amor ocorre ainda na infância do protagonista, quando Diadorim era apenas um "Menino" que realizou uma travessia de canoa até o grande Rio São Francisco com Riobaldo, e é contado (como memória) em forma de episódio num ponto já mais avançado da história. Esses "episódios" e "historietas" são frequentes ao longo do texto e, apesar de parecerem desconectados do enredo principal, adicionam muito à história, além de tornarem não-linear o tempo da narrativa.
Essas historietas compõem, juntamente com a história principal, um enredo incrível, que passa por toda a formação de Riobaldo: primeiramente sua infância pobre com a mãe Bigrí, depois sua adoção pelo padrinho Selorico Mendes e posterior fuga, tornando-se jagunço Tatarana após ser professor de Zé Bebelo, após isso passa por 3 chefias diferentes (Joca Ramiro- Hermógenes e Titão Passos- contra Zé Bebelo; Medeiro Vaz contra os Judas; Zé Bebelo contra os Judas), faz um suposto pacto com o demo (que, na minha opinião, realmente aconteceu, pois os atos de Riobaldo se tornaram muito diferentes após o trecho nas Veredas-mortas), torna-se o chefe Urutú-branco e, na mesma luta em que mata o seu maior inimigo Hermógenes, perde seu maior amor Diadorim. Tudo isso é narrado de maneira fluída, sem capítulos, quase sem pausas, assim como o fluxo ininterrupto de uma vereda.
Esse incrível enredo, somado à linguagem, aos temas metafísicos e ao cenário do sertão, tornam essa obra uma travessia única e marcante na vida de todos os leitores que tem coragem suficiente para enfrentá-la e assim descobrir que viver é algo realmente muito perigoso...