Alan Martins 25/12/2018
O Evangelho segundo José Saramago
Título: O Evangelho segundo Jesus Cristo
Autores: José Saramago
Editora: Companhia de Bolso
Ano: 2005
Páginas: 376
“Filho, a ocasião pode sempre criar uma necessidade, mas se a necessidade é forte, terá de ser ela a fazer a ocasião.” (SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo. Companhia de Bolso, 2005, p. 265)
Assumidamente ateu, José Saramago teceu inúmeras críticas à Igreja Católica ao longo de sua vida. Em ‘O Evangelho segundo Jesus Cristo’, encontramos uma obra que engloba muitas dessas críticas, que se estendem à Bíblia e ao cristianismo. Todavia, não se trata apenas de críticas, e sim de um romance muito bem escrito.
Nobel lusófono
Nascido em 1922, filho de agricultores, José Saramago, até o momento, é o único autor lusófono a ser laureado com o Nobel de Literatura. Isso aconteceu no ano de 1998, pegando o autor e seu editor de surpresa.
É o autor de livros reconhecidos mundialmente, como o próprio ‘O Evangelho segundo Jesus Cristo’, ‘Ensaio sobre a cegueira’, ‘O ano da morte de Ricardo Reis’, entre outros.
Além da literatura, foi conhecido por suas posições políticas e por suas críticas à Igreja Católica. Faleceu em 2010, aos oitenta e sete anos de idade.
“[…] pois o Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente ausência do outro.” p. 12
Recontando a vida de Jesus Cristo
No mundo ocidental, é difícil encontrar alguém que nunca tenha ouvido falar em Jesus Cristo, em sua história, que é narrada nos Quatro Evangelhos, presentes no Novo Testamento. Foi a figura de Cristo que inspirou o cristianismo e suas diversas vertentes, que possuem muita força no Ocidente.
Porém, as histórias que encontramos nos Evangelhos não narram toda a vida de Jesus, que teria sido crucificado com trinta e três anos de idade. Ficamos sabendo sobre o seu nascimento e sobre sua vida adulta, já próximo ao tempo de sua morte; há uma grande lacuna sem respostas. Como teria sido a infância de Cristo, sua adolescência e início da vida adulta? Não temos essas informações na Bíblia.
Aproveitando esse espaço em branco, José Saramago usou toda sua criatividade, inteligência e habilidade de escrita para focar nesses espaços de tempo que não são narrados na Bíblia, com uma grande ênfase na adolescência de Jesus, quando ele começou a se compreender como homem, até conhecer sua missão na Terra, que lhe é dita por Deus em pessoa.
“[…] o melhor é não arriscar juízos morais peremptórios porque, se ao tempo darmos tempo bastante, sempre o dia chega em que a verdade se tornará mentira e a mentira se fará verdade.” p. 159
Pitada de polêmica
Saramago tomou muita liberdade para escrever seu romance, e acabou por alterar alguns eventos bíblicos, como, por exemplo, José, pai de Jesus, que neste livro é morto crucificado (aos trinta e três anos de idade), ao ser confundido como um rebelde. Ademais, temos uma suposta trindade, composta por Deus, Jesus e o Diabo. Ou seja, há muita coisa nesse livro que vai de encontro à doutrina católica, por isso a Igreja Católica de Portugal não gostou nada e criticou o autor.
Também temos algumas cenas que envolvem sexo. Saramago quis humanizar os personagens, principalmente a figura de Jesus Cristo. No início temos uma cena onde José faz sexo com Maria, o momento em que a semente de Jesus é plantada, com a ajuda de uma intervenção divina. E o próprio Jesus satisfaz suas necessidades carnais, com Maria Madalena (ou de Magdala, como é chamada no livro), uma ex-prostituta que será o par romântico de Jesus.
Toda essa história é contata com o estilo característico de José Saramago: parágrafos longos, diálogos sem sinalização especifica (ele apenas os separa por vírgula), nem perguntas são sinalizadas, não há uso de ponto de interrogação ou exclamação. Quem lê um de seus livros pela primeira vez pode estranhar esse estilo, mas, no decorrer da leitura, ficamos acostumados com essa escrita “diferente”, e isso não será um problema. O que é diferente, às vezes, assusta, mas não precisa ter medo.
Além de nos contar uma história, o autor também faz algumas reflexões sobre a fé, sobre Deus e a religião. Na maioria dos casos, essas reflexões são críticas, trata-se da posição do próprio Saramago. A linguagem apresentada varia um pouco, às vezes é mais simples, às vezes mais complexa, o que demonstra a habilidade do autor e faz desse romance algo único.
Nos primeiros capítulos a narrativa é um pouco lenta, não tão interessante assim, mas todo detalhe apresentado será importante. Quando a jornada de Jesus tem início, as coisas ficam mais interessantes. O melhor do livro está na metade para frente, culminando em um final muito bem elaborado, que pode deixar muita gente de boca aberta. Vale a pena chegar até o final da leitura, você não vai se arrepender.
Por fim, vale ressaltar o motivo de Deus ter exercido sua força para que Jesus fosse concebido, que se assemelha a uma teoria da conspiração contra os demais deuses que existem ao redor do mundo. Saramago também retira do Diabo qualquer culpa pelos problemas do mundo, deixando tudo como consequência das ações de Deus, que busca uma maior popularidade entre os mortais. Muitos cristãos podem ficar incomodado com a leitura, entretanto, quem tem fé verdadeira não será abalado, e pode achar o livro interessante, afinal é uma obra que pode te fazer (e vai) refletir.
“[…] o tempo não é uma corda que se possa medir nó a nó, o tempo é uma superfície oblíqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e aproximar. p. 137
Sobre a edição
Edição de bolso, ou seja, tamanho reduzido, brochura, capa sem orelhas. O papel utilizado no miolo é o Pólen Soft, e, claro, a diagramação é reduzida, com fonte pequena e pouco espaço entre as linhas. Estamos falando de uma edição de bolso que se propõe a ser mais barata (às vezes fica só na proposta, pois o preço continua elevado).
A ortografia segue o original, ou seja, é o português de Portugal. Saramago não gostava que seus livros fossem adaptados para o português local. Isso não é um problema, apenas algumas palavras são diferentes. O estilo original é mantido, o que é melhor.
“[…] deserto é tudo quanto esteja ausente dos homens, ainda que não devamos esquecer que não é raro encontrar desertos e securas mortais em meio de multidões.” p. 61
Conclusão
Quem se interessa pela Bíblia, seja pela fé, por estudo ou apenas curiosidade, vai ficar interessado em conhecer a história de um Jesus humanizado, com as necessidades e dúvidas de qualquer ser humano comum. No Novo Testamento existe uma lacuna na história de Jesus, pouco (ou nada) se sabe sobre sua adolescência e início da vida adulta. José Saramago dá grande ênfase nessas fases da vida do jovem Jesus, que deixa sua família e parte para uma jornada de descoberta e aprendizado, até ter seu encontro com Deus e descobrir muito mais a respeito de si, sobre sua real missão. Escrito com o estilo característico de seu autor, esse livro apresenta muitas reflexões e críticas à Bíblia e, principalmente, à Igreja Católica, que não gostou nada e também criticou Saramago, dizendo se tratar de uma obra que fere a fé. A polêmica se deu, também, pelas cenas sexuais, entre Maria e José, e também entre Jesus e Maria Madalena (de Magdala). Não é uma obra que vai fazer alguém abandonar sua religião, trata-se de um autor que tomou a liberdade para especular sobre a vida de Jesus, principalmente sobre os períodos menos conhecidos de sua vida, dos quais não há evidências. Uma obra que traz muitas críticas, mas que, ao mesmo tempo, faz o leitor pensar a respeito de muita coisa. Ademais, esse livro apresenta um dos melhores finais de todos. Fique atento aos pequenos detalhes e, caso ache o começo arrastado, insista na leitura, valerá a pena.
“O barro ao barro, o pó ao pó, a terra à terra, nada começa que não tenha de acabar, tudo o que começa nasce do que acabou.” p. 23
Minha nota (de 0 a 5): 4
Alan Martins
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