Arsenio Meira 16/10/2013
Scliar, finalmente
Datada do ano de 2005, quando veio à lume a primeira edição (por mim lida e adquirida num bom e velho sebo), eis um breve romance (apenas 168 páginas!) precioso, lírico, triste e, claro, belissimamente escrito pelo escritor gaúcho, sempre negligenciado por mim até a data de hoje.
Conforme os rigores da lenda, um sapateiro judeu chamado Ahasverus cruzou com Jesus Cristo, por quem foi condenado a vagar pelo mundo sem caminho certo e sem morte, até a Sua volta. "Na noite do ventre, o diamante", este mito do “judeu errante” é transportado para a própria pedra preciosa, que serve à narrativa como um poderoso símbolo de maldição, de vaidade, de medo, uma representação das agruras e venturas do povo judeu.
Guedali Nussembaum — brasileiramente batizado de Gregório — era uma criança na Rússia às voltas com a Revolução de 1917. Sua pobre família, em busca de melhores perspectivas, resolve partir em fuga para o Brasil, imaginário de novos começos. Mas os perigos da viagem logo impõem o problema de esconder a única riqueza da família, um anel com um diamante solitário há muito herdado. Os pais decidem que Gregório, filho mais velho, engolirá a pedra, enquanto Dudl, seu irmão, o anel. Gregório, entretanto, fica com diamante preso em uma pequena cavidade de seu intestino, e descobre que na verdade engoliu uma maldição.
Narrador habilíssimo, Scliar faz sua pedra passear de uma remota vila brasileira em 1662 até a Europa — onde encontra Gregório — e de volta, como em busca de si mesma. Numa viagem pelos mitos que ligam tesouros e pedras preciosas a maldições, o autor, repetidamente, submete o leitor à questão: o que se pode fazer com diamantes? E não se arrisca a dar muitas respostas prontas.
O livro, de leitura prazerosa, é recheado de referências históricas e culturais, e consegue misturar filosofia, inquisição, medicina, Brasil, Holanda, rivalidade entre irmãos, e tudo isso sem que o leitor se sinta pressionado pela enorme volta que deu dentre tópicos ãao variados. Menções são feitas a figuras como Pe. Antônio Vieira e Andreas Vesalius, o chamado pai da anatomia. Sem falar que Scliar transforma o filósofo Spinoza, com suas heresias racionalistas, em personagem, e lhe empresta algumas das mais belas e profundas passagens da obra.
Um dos cinco livros da coleção Cinco Dedos de Prosa da Objetiva, "Na noite do ventre, o diamante" representa o anular, talvez o mais vaidoso dos dedos, aquele que se “veste”. É no anular, por exemplo, que se usa a aliança de casamento. Mas aqui a aliança é de sangue, é ancestral, e de forma muito significativa é engolida, ou seja, literalmente interiorizada, como se lançasse a pergunta: como é que nos livramos daquilo que é mais profundo em nós?