Luís Henrique 29/12/2020
O melhor romance romântico de Machado?
Neste quarto romance de Machado de Assis, último de sua fase romântica como escritor, somos apresentados a uma história com enredo relativamente simples. O trunfo da narrativa, no entanto, está precisamente nela mesma, ou seja, na maneira como somos conduzidos pelo desenlace dos acontecimentos. De início, parece que essa frase pode ser utilizada para explicar uma tonelada de romances, mas explico por que ela cabe perfeitamente em uma descrição desta obra. Após ter publicado três livros sólidos, que com certeza ainda são objetos de discussão entre a academia literária brasileira — um deles inclusive originando diversas versões de novela da Globo ("Helena") —, Machado termina, de uma maneira singular, um importante estágio de sua famosa carreira não só como contador de histórias sobre um específico estrato da sociedade carioca da virada do século XIX para o XX, mas também como um legítimo analista da índole humana. Ao valer-se de poucos personagens e não permitir o desenvolvimento de excessivos dramas paralelos, nota-se que Machado preza pelo aproveitamento de cada elemento inserido na história. Realmente, ao longo da leitura, é possível perceber que o mais simples dos atos descritos, como um pequeno susto ou um tremor de mão, terá papel fundamental mais adiante. Além disso, os problemas são expostos e resolvidos linearmente, sem sobreposição, o que não quer dizer que não haja complexidade em cada um deles, principalmente no que se refere ao seu teor essencial: as implicações dos laços amorosos e afetivos. Mais do que isso: como eles se relacionam com a personalidade de cada indivíduo. Dito isso, a trama começa quando a sra. Valéria, viúva abastada de um desembargador, pede a ajuda de um amigo de família para convencer seu filho a lutar na Guerra do Paraguai, com o objetivo de dissuadi-lo de um amor que julga ser mau agouro. O amigo em questão, o sr. Luís Garcia, também viúvo e com filha única, é um sujeito íntegro porém muito reservado. Acaba virando confidente tanto da mãe quanto do filho, com a ressalva de nunca saber realmente qual é a identidade da paixão ardente de Jorge. Depois de curto período, Jorge decide ir à guerra para satisfazer a vontade de sua mãe e, sobretudo, para sacrificar-se por um amor que não lhe corresponde à altura de suas atitudes. A causa de sua partida do Rio de Janeiro para os perigos que enfrentaria por três a quatro anos no exterior é a pessoa que despertou sua primeira paixão, Estela. Orgulhosa, ela é protegida da sra. Valéria por ser filha de um empregado que serviu ao pai de Jorge. O pai de Estela é a favor da união da filha com o mancebo de melhor posição social pelas vantagens que o casamento traria. Valéria, no entanto, de opinião contrária, temendo pelo retorno breve do filho e por sua insistência em um amor que não aprova, acaba contribuindo para que Estela se case com Luís Garcia, para quem Jorge escrevia cartas enquanto servia no exército. A sra. Valéria acaba morrendo, e Jorge, retornando para o Rio com distinções por seu desempenho no combate, sempre reflexivo sobre seus sentimentos do passado e, principalmente, se ainda são tão fortes a ponto de intervir significativamente em sua vida no presente. E este é apenas o cenário posto pelo autor para trabalhar as questões mais contundentes do romance, que virão a seguir, das quais quero destacar algumas, como o uso da razão versus emoção, a natureza e o poder das primeiras paixões, a duração de um sentimento, as razões para um bem-sucedido casamento e as marcas que a jovialidade causa em nossas ações. Esta última fazendo ligação com algo que, quase acabada a resenha, ainda não mencionei: a própria Iaiá, filha amada de Luís e depois enteada de Estela, a qual acompanhamos em sua jornada pelo autoconhecimento e amadurecimento, em meio aos segredos que envolvem o passado dos outros personagens e frente às dúvidas que surgem sobre o futuro. Como li em outra resenha, é realmente interessante observar como Iaiá ocupa seu papel na obra, porque, no começo, mesmo que o título do livro seja seu nome, ela não é o objeto de destaque. Porém, mais adiante, ouso dizer que as descrições dos sentimentos de Iaiá, que nunca se encontram em estado estático (como que flutuam incertos e mudam bruscamente, como suas ações, assim que ela descobre algo oculto anteriormente), estão entre as passagens mais interessantes em toda a obra. A construção da personagem, que de início pode parecer um pouco inverossímil pelo aspecto infantil que demonstra ainda aos 17 anos de idade, ganha cada vez mais consistência e suas declarações mostram pitacos de sagacidade impressionantes. É possível até mesmo rir em alguns momentos de suas observações e comportamentos. São esses momentos, em conjunto com a ordem dos fatores que nos leva a conjecturar sobre o emaranhado de complicações que nossos amores podem trazer à nossa volta (e sobre como lidamos com esse emaranhado, reprimindo-o ou tentando resolvê-lo), que não deixam a leitura enfadonha. Diferentemente de, por exemplo, "Ressurreição", romance de estreia de Machado, aqui a história é escrita com mais segurança, e os poucos personagens que existem existem por um motivo específico e desempenham papel necessário na obra. A principal impressão que fica após o término da leitura é de que, parando para prestar atenção, nada é “de graça”. Não há pontas soltas, e atribuo isso, em parte, à pouca complicação na estrutura básica do enredo. [Spoiler alert.] Uma das raras coisas que me incomodou foi uma espécie de deus ex machina perto do final, na hora em que Estela se muda para o norte de São Paulo, desse jeito não oferecendo mais nenhum risco de desarmonia ao casal recém formado entre Jorge e Iaiá, demonstrando sua disposição em não ser motivo de nenhum problema matrimonial para sua enteada por causa de algum causo remoto de sua história passada. A viagem para dirigir o estabelecimento de educação de “uma antiga condiscípula” mostra-se como uma solução repentina e não muito natural para que não haja mais nenhuma sombra de desentendimento entre o triângulo amoroso. Porém, gostei do toque de mistério e dúvida que permanece ainda no fim sobre os sentimentos de Estela. Mesmo com sua explicação sobre por que recusou Jorge em 1866, não fica claro se seu amor está completamente desvanecido no presente. Mas, ainda que fosse o caso, “[...] agora preferia calar-se”, deixando de lado qualquer ambição de ascensão social pelo casamento. [Fim do spoiler.] Avaliação final: recomendo a leitura.