Flávia Menezes 10/05/2023
??PARA OS INGLESES A VIDA É UM TÓPICO, NÃO UMA ATIVIDADE!
?Mrs. Dalloway? é um clássico inglês aclamado no mundo todo, e uma das obras mais famosas da ensaísta, contista, escritora e ativista política britânica Adeline Virginia Woolf, publicado em maio de 1925, tendo sido originado a partir de dois contos da autora: ?Mrs. Dalloway na Bond Street?, e do inacabado ?O Primeiro Ministro?.
Escrito através da técnica literária modernista denominada ?fluxo de consciência?, que também marcou o estilo dos renomados escritores James Joyce e William Faulkner, ?Mrs Dalloway? representa um marco na literatura universal e na narrativa ocidental por exibir um retrato fiel da sociedade burguesa da época. Sua grande fama o fez ser incluído na lista dos 100 melhores livros de todos os tempos pelo ?The Guardian? de maio de 2002, e ainda como um dos melhores livros escritos em inglês listados pela revista ?Time? de outubro de 2005.
Apesar da proposta simplista de escrever uma história onde tudo se passa em um único dia de junho de 1923, quando Clarissa, a esposa do aristocrata Richard Dalloway, sai para comprar flores para a festa que dará à noite em sua casa, essa onisciência seletiva da narradora (Clarissa), focada em um pequeno e despretensioso objeto (flores), e nos fatos ordinários do dia a dia que aconteciam ao seu redor, vai abrindo espaço para o infinito do mundo psíquico.
Durante o trajeto feito por Clarissa, ela vai encontrando outros personagens, que ao se aproximarem, permitem que em um movimento bastante sutil, da mente de Clarissa passemos à outra, penetrando assim em suas camadas mais profundas que apagam os contornos entre passado e presente, permitindo ao narrador desaparecer para dar palco à consciência do próprio personagem.
De fato, a qualidade da narrativa é impecável, e esse transportar de uma consciência à outra é de uma maestria tão impressionante que quando percebemos, somos outro... e depois outro... e depois outro... e mais outro? nessa dança incansável que nos hipnotiza, e nos agita de um jeito que não se quer mais parar.
Ora somos Clarissa, e ora somos seu ex-namorado Peter Walsh. Mas também chega o momento em que seremos Septimus Warren Smith, ou sua esposa Rezia, ou ainda seu médico psiquiatra Sir Williams. Tanto quanto retornaremos à Clarissa, para a seguir sermos o seu marido Richard Dalloway, ou sua filha, Elizabeth, e até a amargurada professora da sua filha, Miss Killman.
Experimentamos tantas vidas, tantos sentimentos, mas ao final, percebemos que cada um deles é apenas uma parte do todo da própria Woolf, onde para ela a vida é feita de trevas impenetráveis, e toda a sua essência jaz à sombra daquela que flerta com a falsa impressão da salvação que se esconde por trás do ato de desistir (suicídio).
Apesar da possibilidade de ser tantos, ao mesmo tempo, eu me sentia sendo nenhum. Porque por trás dos modos impecáveis provenientes dos melhores internatos ingleses, ou dos jantares requintados onde todo refinamento da alta sociedade, com seus ares de sofisticação, se convertem no mais pedante diálogo intelectual, quando os despimos de suas roupas de festa, e limpamos qualquer vestígio de maquiagem, percebemos que seus olhos estão gritando aquele silêncio perturbador que é esse vazio existencial que carregam dentro do peito.
Assim como vi em ?O retrato de Dorian Grey? de Oscar Wilde, Woolf delineia os mesmos traços que me fazem crer ter algo de cultural, quando também fala (através dos seus personagens) da frustração da vida adulta, e dos dias que são perdidos se pensando na juventude de outrora com saudade, e não do que se viveu propriamente, mas de quem se podia ser. Livre, autêntico, único e até irresponsável. Porque mesmo nos erros temos a liberdade de experimentar a beleza da nossa imperfeição que não nos pune, não nos julga e que muito menos nos condena.
E que bom era sentir o frescor da juventude aquecendo e ruborizando suas faces, não é mesmo? Como era bom sentir todo o vigor do corpo jovem, que até deixa as suas personalidades ainda mais deslumbrantes. Como é bom sentir o impulso da vida de se apaixonar e se enamorar de alguém, sem ter responsabilidades e nem ter que ser a imagem da virtude.
Mas será que é apenas sendo jovens que poderemos experimentar a vida na sua essência mais pura e mais vigorosa? Será mesmo que crescer e amadurecer e se tornar adulto é assim tão trágico, que nos condena a uma vida de frustrações e de vazio, sonhando com os dias passados que já não voltam mais? Eu penso que não. Mas pelo visto, Wilde e Woolf tinham esse pensamento em comum.
Aliás, para ambos parece que a vida matrimonial é um verdadeiro martírio, um calvário onde os homens vão se tornando dia após dia mais como condenados amargurados, e as mulheres umas vítimas decadentes, que a cada ano vão perdendo mais e mais da beleza atraente que um dia tiveram. Lares luxuosos, de camas tão frias como assim também os são os seus corações.
Uma vez casados, ou enchem suas casas daqueles que carregarão seus sobrenomes, lhes concedendo uma forma de viver a imortalidade, ou não lhes sobrará mais nada, a não ser acabar seus dias atormentados pelas vozes dos filhos aos quais não foi permitido nascer, até o instante em que já não se parece mais tão assustador o findar da vida, mas sim, a única salvação.
Mas se o matrimônio é um castigo, não se casar é um infortúnio ainda maior. E aquela que o fizer passará uma vida medíocre amando nos filhos dos outros, daquelas a quem odiará por pura inveja, por não poder ter gerado seus próprios filhos. Não dar à luz é se render ao karma de ser sugada pela sombra, onde a felicidade nunca irá lhe visitar. Muito menos o amor.
E nessa ausência de compaixão que parece aqui reger o feminino, as mulheres se odeiam, e se invejam, se maltratam e se alfinetam com uma fúria que me faz lembrar a fala de Freud que estamos fadadas a permanecer incompletas e vacilantes nessa não saída do nosso Édipo.
Somos complexas porque o amor em nós é complexo. Porque se ama o pai, por não poder amar demais a mãe, e dessa forma, se ressente da mãe por não ter tido o amor suficiente por parte dela. E assim, o feminino em nós deseja aflorar, mas quer que ele seja sensurado na outra, e a repele e a expulsa com a certeza de que só seremos felizes se afastarmos de nós quem nos é semelhante.
Se tentarmos tomar o pulso desses personagens, certamente ficaríamos horrorizados. Homens... mulheres... jovens... velhos... Todos uns infelizes que ficam amando a natureza muito mais do que a si mesmos, e aos outros.
Falam da beleza da vida que vem da natureza, ou das obras de Shakespeare, mas sentem uns aos outros como se fossem apenas corpos sem almas.
Que mundo mais vazio, mais cinza e gelado que Woolf descreve com sua escrita poética que vem dessa profundidade do fluxo de consciência. Aqui, o belo se torna nada belo, e a tristeza salta aos nossos olhos a cada uma das palavras, até que... Até que Peter Walsh apareça!
O ex-namorado de Clarissa surge para dar vida a uma obra que eu já julgava estar morta. E olhar pelos seus olhos me devolveu a esperança de que nem todos aqui desistiram de amar, e de se render a todas as doçuras, tanto quantos aos dissabores que paradoxalmente somos lançados no momento exato em que nos apaixonamos por alguém.
Me encantei perdidamente por Peter Walsh. E como é saboroso se encantar com um personagem que só existe na ficção, mas que traz em si as nuances da realidade que tanto apreciamos. E se não fosse por ele, confesso que seria impossível ter tido qualquer tipo de afeição por Clarissa Dalloway.
Pelos olhos dele vemos uma Clarissa que tem sangue quente correndo por suas veias. Ele fala dela com uma paixão de quem vê defeitos e qualidades, e as aprecia na mesma intensidade, porque entre o amar e o brigar existe a força de um sentimento que o domina e o faz sentir vivo. E que concede a mesma potência de vida à Clarissa.
?Ela fechou a porta. Na mesma hora, ele ficou muito deprimido. Tudo parecia sem cabimento ? continuar apaixonado, continuar brigando, continuar fazendo as pazes.?
Quanta força existe em uma frase como essa! Ou nesta:
?Ela o influenciara mais do que qualquer outra pessoa na vida.?
Ou ainda nesta última:
?Mas o bilhete o tirou do sério. Aborreceu-o. Fez com que ele desejasse que ela não o tivesse escrito. Suplantado todos os demais pensamentos, era como um cutucão nas costelas. Por que ela não o deixava em paz? Afinal, ela tinha se casado com Dalloway e passado todos esses anos com ele na mais perfeita felicidade.?
É o ciúmes por trás da fachada do homem durão. Daquele que não pode amar, porque não foi o seu escolhido, mas que no fundo, ainda a ama e sabe que ainda é amado por ela, porque nem todo o poder que um sobrenome pode ter sobre a face dessa terra, é capaz de apagar o quanto duas pessoas podem ser perfeitas juntas. Até brigando eles eram perfeitos!
Se não fosse por Peter Walsh, eu jamais teria gostado de alguma coisa nessa leitura. Porque quando eu me vi afogando em um tédio absurdo nesse mar sombrio de personagens amargurados e infelizes, foi Peter Walsh quem me resgatou e me fez sentir, de fato, o coração ficando mais quentinho.
Não tenho dúvidas do quanto técnica é bastante primorosa (diria até impecável) a ponto de torná-la um grande clássico de todos os tempos, mas o vazio no qual somos lançados nessa obra é tão profundo, que no final, se não fosse por Peter Walsh, não restaria nenhuma sombra de esperança.