Val 22/11/2017
Nós e nossos cativeiros: trabalhoso escapulir.
“E, de inopino, a resposta lhe ocorreu. Soltou uma risada. Agora que a tinha, ela era como um desses quebra-cabeças que nos obsedam até que alguém nos mostre a solução; ficamos então a imaginar como aquilo nos pode escapar. A resposta era evidente. A vida não tinha sentido.”
Quem gosta de ler, sempre tem um livro favorito, marcante. Um, dois, dez, cinquenta. Tudo depende, evidentemente, do nível dos livros que se lê em face ao seu gosto pessoal. Mas sempre há aquela obra que nos fascina, intoxica a alma, entranha-se no coração e nos marca a mente.
Tela “Olympia”, de Édouard Manet, muito citada na obra.
Terminei a leitura de um desses. Uma obra prima – também assim considerada – de William Somerset Maugham (leia-se samersit mo:m), denominada por este britânico talentoso de “Servidão Humana”. Pelo título, presume-se a dimensão e profundidade da mesma. Considerado pela crítica como um dos romances mais emblemáticos do século XX, é uma narrativa clássica da pré-adolescência e entrada na idade adulta contando a história de Philip Carey, alter ego de Maugham na sua juventude, dividido entre o fervor religioso da família anglicana e o desejo de liberdade que os livros, as artes e os estudos lhe dão a conhecer. Na sua ânsia por independência e aventura, Philip, mesmo com uma deficiência física, sai de casa em busca de uma carreira como artista em Paris. Mas os seus planos vão ser postos em causa quando se apaixona perdidamente pela mulher que mudará a sua vida para sempre. Sua deformidade lhe moldará o caráter e devido a ela irá adquirir o poder da introspecção através da qual desenvolverá a sua intensa apreciação da beleza, a sua paixão pela arte e pela literatura, e o seu interesse pelo espetáculo da vida.
Relato inigualável sobre o poder do desejo e da sede de liberdade do homem moderno, Servidão Humana coloca-nos friamente perante a nossa própria visão da vida, as nossas dúvidas e o poder transformador das decisões. Somos levados a nos deparar inúmeras vezes com situações que exigem decisões, sacrifícios, ousadia. Você deseja isso, mas, talvez, como o personagem, ver-se-á às voltas com soluções que não são suas. Você com certeza tem um lugar garantido na obra. Sofrerá muito como o próprio protagonista. Ficará feliz, ansioso, sofrido. Viajará por livros e obras de arte. Ansiará para que Philip tome as decisões corretas, suas atitudes lhe darão nos nervos, mas você acabará incorporando-o. Um herói rico e denso que certamente possui alguma faceta com a qual qualquer leitor logo se identifica.
Um raro romance que não aborda sexo e dele independe. Em contraposição, explora a moral a braçadas, sem se tornar chato, apenas reflexivo. Um livro que constrói, mesmo em suas páginas mais tenebrosas.
W. Somerset Maugham (1874-1965)
Desde a adolescência, minha britânica senhora professora de língua inglesa recomendava-me esta leitura. Mas somente agora tive este ensejo e a sorte de conseguir um exemplar de 564 páginas, volume 19 da coleção Os Imortais da Literatura Universal, da Editora Abril, de 1971, com a brilhante tradução do português António Barata (a qual recomendo). Hoje, infelizmente não se encontram novas edições e uma obra prima como Servidão Humana acha-se esgotada nas livrarias. Uma excelente alternativa são os sebos digitais, onde você encontra vários exemplares da obra por valores irrisórios (R$ 4,00), por incrível que pareça. Não perca a chance!
Por Valdemir Martins, em 14/10/2016