Naiana 24/05/2022
Uma peça teatral recheada de ironias e verdades
"Desejo que as pessoas não procurem respostas nesta história, mas se integrem à discussão, e se divirtam." Palavras de Aldri Anunciação sobre sua obra, respostas? Difícil achar uma só que se adeque a todos os questionamentos que ele levanta, a todo significado implícito e explícito em seus diálogos, cenário, imagens refletidas nas paredes e música. Eu não vi a peça, mas ler o livro foi quase como estar lá, está tudo aqui preparado para a sua imersão na história que ele quer contar. Sobre se divertir, creio que no cenário em que usamos essa definição da palavra "fazer esquecer; fazer perder o hábito" ele se encaixa perfeitamente. Não é um divertir para rir e se distrair simplesmente, mas um divertir para te causar desconforto, abrir seus olhos, lhe cutucar sobre discursos e diálogos que já ocorrem a nossa volta e nem sempre percebemos o valor ou significado pleno dele.
A autor informa que o tempo narrado ocorre sempre há 5 anos do tempo atual, eu li a edição de 2015, então no texto ele diz que ocorre em 2020, mas como estou em 2022, li que a história ocorria em 2027. Não é um futuro distante, é bem próximo, ali na curva do caminho, muito do que os primos André e Antônio conversam já é discutido ou falado e o que falta para que esse futuro distópico aconteça? Espero que falte muito, espero que nunca aconteça, espero que textos como esse abram os olhos da população para que possamos evitá-lo, mas principalmente para que possamos mudar o cenários de racismo que já existem, acabar com a segregação de cores que ainda perdura no mundo de hoje.
Sobre o texto, ele ocorre 5 anos no futuro, quando as pessoas com ascendência africana devem ser expatriados de volta a África como meio de reparação pelos 3 séculos de trabalhos forçados aos quais seus ascendentes foram obrigados a prestar no período da colonização brasileira, assim como de sua captura e sequestro de suas terras natais. Para realizar essa "reparação" o governo instaurou uma Medida Provisória que determina a expatriação dessas pessoas e seu envio imediato a África, o país em que serão enviados, aparentemente, é de escolha do cidadão. Não importa a classe social da pessoa, ou as relações que ela tem na sociedade, apenas seu tom de pele com Melanina Acentuada. A história se passa quase que completamente sob a perspectiva dos primos André e Antônio, que moram juntos, onde o primeiro é um estudante de Direito e o segundo formado em Direito, além desses dois personagens, há momentos em que é mostrada o que ocorre fora do apartamento deles através de notícias na televisão. Mas no geral todo o texto é a reflexão e discussão sobre o que está acontecendo, dos primos.
Em Antônio vemos um homem bem sucedido, que cuida da aparência, estando sempre bem vestido e preocupado com o trabalho e sua ascensão na carreira. Ele estava iniciando um Curso Preparatório para um Concurso para Diplomata de Melanina Acentuada do Itamaraty, curso esse em que ele fora aprovado em um concurso para fazer, enquanto seu primo não. André já aparente ser mais desleixado com a sua aparência, roupas folgadas e amassadas, segundo o primo, sempre saindo para os bares e bebendo, e é acusado de não conseguir pagar seu curso de direito e ser irresponsável devido às suas farras, mas no decorrer da história é ele quem demonstra entender melhor o que está acontecendo a sua volta, a ter uma visão mais realista da sociedade e do mundo em que vive, enquanto Antônio demonstra ser deslumbrado pelo seu status que tem e a aparente cordialidade branca.
Através dos primos temos as visões do porque permanecer no Brasil e porque deveriam aceitar a expatriação e "voltar" a África, além de discussões sobre a diminuição do racismo no mundo atual e as consequências da escravização dos seus ascendentes e a forma como foram "libertos", sempre trazendo referências do mundo em que vivemos, passado e presente, assim como personalidades que conhecemos. Mas creio que a fala da professora que não se considera Melanina Acentuada, mas parda, é a que traduz melhor esse absurdo:
"Isto não está certo! Aqui é o meu lugar! Eu trabalhei a vida inteira naquela escola ali... E agora vocês querem se livrar de mim? Vocês não podem apagar a minha história! Meus alunos são testemunhas do que fiz por esse país. Perguntem a eles! Vocês não podem negar. Eu faço parte! Eu faço parte da história do Brasil! Eu não sou africana. Sou brasileira... E torço pelo Vasco da Gama!"
Acho que ao invés de respostas, o que essa obra trás são as seguintes perguntas: Expatriar pessoas de Melanina Acentuada da mesma forma em que seus antepassados foram retirados de suas terras natais seria a solução para quê? Para quem? O que está de fato atrás dessa Medida Provisória? E porque ainda hoje separamos as pessoas por cores? .