A Ditadura Envergonhada

A Ditadura Envergonhada Elio Gaspari




Resenhas - A Ditadura Envergonhada


50 encontrados | exibindo 1 a 16
1 | 2 | 3 | 4


Eduarda.Silva 26/02/2022

1/5
A Ditadura Envergonhada é o primeiro volume de uma série de 5 livros escritos pelo jornalista Elio Gaspari.

O autor nos mostra, principalmente, que o regime militar foi construído aos poucos e, além disso, trouxe informações sobre as relações internacionais da época, diversos elementos culturais e deu ênfase na repressão super violenta desse período que durou 21 anos.

O livro tem uma linguagem simples e de fácil entendimento, recomendo muito!

Essa edição tem várias imagens, informações sobre nomenclaturas militares e uma cronologia muito completa de 1950 - 1967.
comentários(0)comente



Antonio Luiz 25/03/2010

Balanço de horrores
Durante os 21 anos da ditadura militar, pouco havia de politicamente mais vital do que saber o que os militares faziam nas masmorras do regime e entre as salas dos ministérios – informação não só difícil de conseguir, como também perigosa para quem não fazia parte dos círculos do poder.

Apesar da censura, sempre havia boatos à boca pequena que, ao menos nas grandes cidades, não permitiam a ninguém ignorar totalmente o que se passava – a menos que fechasse deliberadamente olhos e ouvidos.

Mas saber se de fato o general fulano brigou com o marechal beltrano ou se sicrano já havia sido torturado e morto era um privilégio reservado a poucos civis, que para ganhar status entre seus pares – e, às vezes, recompensas bem mais materiais – só precisavam demonstrar sua intimidade com o poder.

Nestas duas décadas de redemocratização, testemunhos de quem exerceu ou padeceu a ditadura começaram a aparecer à luz do dia e serem colocadas em letra de forma, fragmento por fragmento. Faltava ousar passar da coleta e classificação à reconstituição do conjunto dos acontecimentos numa história que faça sentido.

A obra de Elio Gaspari, "As Ilusões Armadas" foi um salto de qualidade nesse processo. Ao trabalho dos predecessores, reuniu trezentas horas de entrevistas com alguns dos personagens centrais da ditadura general, incluindo o general Ernesto Geisel e seu estrategista, o general Golbery do Couto e Silva.

Dispôs também dos 5 mil documentos que formavam o arquivo pessoal deste último e do diário do capitão Heitor Ferreira, secretário de Geisel. Ao longo de 18 anos de pesquisa – esta obra começou a ser preparada em 1984 – organizou 28.176 fichas no seu computador. O resultado é um amplo e detalhado painel de incidentes políticos e militares da queda de João Goulart ao final do governo Geisel.

Foram lançados os dois primeiros volumes. O primeiro, "A Ditadura Envergonhada" introduz o projeto com a história do fracasso do golpe de Sylvio Frota contra Geisel e o período do golpe de 1964 ao AI-5. O segundo, "A Ditadura Escancarada", prossegue até a posse de Geisel. Faltam três outros volumes que chegarão até a entrega da faixa presidencial ao general Figueiredo, cuja administração, se depender do autor, ficará no esquecimento que pediu.

Quem já viveu ou estudou esses tempos, terá uma oportunidade de recapitulá-los com mais amplitude, além de descobrir detalhes importantes que ainda não tinham sido contados e podem dar uma nova dimensão à gravidade da desordem nos quartéis e das crises miitares do período. Os jovens que ainda não os enfrentaram têm uma boa referência para começar.

Gaspari avisa que seu objetivo não é contar a história da ditadura, mas de como Geisel e Golbery a teriam montado e desmantelado. Mas o leitor não deve levar esse aviso mais a sério que ele mesmo.

O que os dois primeiros volumes oferecem não é exatamente o que se anuncia na declaração de intenções. O autor destaca tanto quanto possível a participação de Geisel e Golbery nos primeiros anos depois do 31 de março, mas ambos estiveram, ao longo desse período, longe do centro do palco – e mesmo nos bastidores sua importância foi relativa.

Participaram das articulações militares e ideológicas que precederam o golpe e que imediatamente o seguiram, mas dizer que o “fizeram” é exagero. Golbery, em particular, foi também o responsável pela criação do SNI, mas durante sua gestão não conseguiu dar ao órgão o caráter e a importância que tinha planejado.

Pela lógica, pouco mais haveria a contar até se chegar a 1973. Apenas como se armou o cenário em que a trama principal – cujo clímax já foi antecipado pela introdução – vai se desenrolar. É óbvio que esses dois grossos volumes e sua abundância de informação oferecem mais do que isso.

O primeiro começa com uma narrativa do golpe militar pouco satisfatória, por não dar importância suficiente às articulações prévias que envolveram militares, civis e a Casa Branca, nem à versão dos vencidos. Ao tomar como mote a frase de efeito do general Cordeiro de Farias – “o Exército dormiu janguista e acordou revolucionário” – deixa na sombra a articulação do golpe. De resto, o próprio general Geisel disse que “o que houve em 1964 não foi uma revolução”, com a mesma franqueza que fez dele o único general a defender a tortura em público.

Continua com uma narrativa mais extensa e satisfatória dos conflitos dentro das Forças Armadas nos primeiros anos do regime e do nascimento da guerrilha. Aqui insiste, de forma pouco convincente, em explicar a atuação de Fidel Castro e Leonel Brizola principalmente a ambições pessoais, além de atribuir uma responsabilidade talvez excessiva ao segundo.

No segundo tomo, trata-se do endurecimento e sistematização da repressão e da tortura, seguidos pela decisão de fazer “desaparecer” todos os militantes capturados e pela degeneração tanto da guerrilha quanto do aparelho repressivo.

Gaspari apropria-se do carinhoso apelido de “tigrada”, dado à turma dos porões por Delfim Netto, que pressionou banqueiros e empresários a contribuir para a Operação Bandeirantes (Oban).

Assim se dey vida ao monstro que, como nos filmes fica menos terrificante e mais grotesco quando deixa de ser apenas insinuado em memórias fragmentárias e aparece de corpo inteiro à luz da variedade de fontes a que o autor recorre, incluindo os generais, a Igreja Católica e o testemunho de torturadores e torturados.

Essa história horrível ainda não havia sido contada de uma forma tão panorâmica e capaz de abrir o caminho a considerações mais complexas que a simples ojeriza moral.

O problema é que Gaspari promete tanto os “Anos de Chumbo” quanto o “Milagre Brasileiro”, mas os primeiros são bem melhor contados que o segundo. Ao se ver obrigado a esboçar uma reflexão que vá além dos aspectos mais chocantes da ditadura, Gaspari deixa a desejar – e cai no mesmo equívoco de histórias do nazismo que o reduzem ao Holocausto ou tentam explicá-lo pelas ambições pessoais destes e daqueles líderes.

Descreve esses anos como uma série de articulações e desarticulações de militares e oposicionistas, condicionada apenas pela busca de poder e prestígio dentro de suas respectivas estruturas burocráticas. Quando as realidades internacional e econômica chegam a ser mencionadas, é só como plano de fundo.

O golpe quis se justificar principalmente como uma reação a uma política econômica de esquerda e seus sucessos e fracassos nesse campo traçaram seu destino. Mesmo assim, as questões econômicas ocupam uns poucos parágrafos nas quase mil páginas já publicadas.

Octávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos são ignorados. Nada se diz do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) e das divisões que provocou nas bases civis e militares de Castello Branco. Já Delfim Netto é amplamente citado – mas não por sua atuação econômica e sim por seu papel no endurecimento e na consolidação política da ditadura.

As crises militares que agitaram o país durante as gestões dos generais Castello Branco e Costa e Silva surge do vazio, como mera expressão da ambição e do personalismo deste ou daquele comandante da “linha dura”, ou simplesmente da “anarquia militar”. Hoje, qualquer bom colégio oferece análises mais ricas em suas aulas de história.

O próprio texto de Gaspari dá pistas de algo mais por trás dessas insubordinações. Menciona a importância do Ato Complementar nº 40 – a centralização dos recursos fiscais nas mãos do governo federal – como “instrumento de funcionalidade do AI-5 nas relações econômicas do Estado brasileiro, transmutando aquilo que poderia ser uma ditadura difusa num processo de reorganização do poder”.

Mas não chega a conclusão de que abrir o caminho para essa reorganização – igualmente desejada por muitos militares e muitos civis poderosos – era, muito mais que a repressão, o objetivo do endurecimento.

Por que o general Affonso de Albuquerque, depois de ter apoiado o AI-5 e a concentação do poder econômico nas mãos do ministro Delfim, despediu-se do governo denunciando o clima político que “propicia e coonesta uma verdadeira escalada dos grupos econômicos poderosos, em detrimento mesmo das empresas nacionais”? Por que, exatamente, disse a ACM que o “o Delfim e o Andreazza devem ser enforcados e pendurados de cabeça para baixo, como ladrões”?

E o que queria a tal “linha dura”? Simplesmente poder e repressão? Assim fica difícil entender o processo de escolha do sucessor de Costa e Silva que, como diz Gaspari, tinha de ser o “mínimo múltiplo comum” entre “duros” e “moderados”, pôde convergir no general Emílio Garrastazu Médici. O homem que levou a sanguinolência da ditadura ao extremo, sem que os “moderados” esboçassem a menor restrição.

Não parece que tenham sido relevantes as divergências sobre como tratar a oposição, pacífica ou armada. Os conflitos que precisavam ser assentados giravam sobre os rumos da economia. Envolviam, entre outras coisas, a oposição entre setores mais favoráveis a interesses transnacionais e outros mais “nacionalistas” – mais fracos e por isso mesmo mais exaltados, mas suficientemente posicionados para exigir algumas satisfações.

É preciso levar Delfim mais a sério quando diz que “o discurso do Marcito [Moreira Alves] não teve importância nenhuma. O que se preparava era uma ditadura mesmo. Tudo era feito para levar àquilo.”

É de supor que essas divisões militares representassem – não necessariamente com fidelidade – divisões análogas nos meios empresariais e financeiros. Apesar de banqueiros e empresários aparecerem a todo o momento como testemunhas de decisões sigilosas e financiadores diretos da repressão, a história é contada como se não tivessem qualquer participação ativa nesses conflitos e decisões, o que deixa no escuro não só a essência do regime militar, como também uma parte decisiva da história que Gaspari se propõe contar.

Pelo contrário, Gaspari enfatiza os conflitos e a desordem entre os militares para insisitir, como anuncia na introdução, que negar racionalidade e ideologia à ditadura militar e afirmar que Geisel e Golbery desmontaram a ditadura militar simplesmente porque “era uma grande bagunça”.

Há aí pelo menos dois mal-entendidos. O primeiro é julgar que ideologia – no caso a “Doutrina de Segurança Nacional” – significa uma teoria racional completa, coerente, conseqüente e estável, aplicada em cada decisão concreta. A ideologia pode sonhar consigo mesma dessa maneira, mas nada mais é que uma falsa consciência da realidade.

O segundo é tratar a ordem e a racionalidade como absolutos e supor que a corrupção, os absurdos, os fiascos, e as insubordinações as desmentem, quando na realidade podem ser seus instrumentos e até suas condições de existência – em maior ou menor medida, dependendo da natureza e objetivos dessa ordem.

Também no III Reich, havia corrupção desenfreada, conflitos entre subordinados, superposição irracional de atribuições entre órgãos e funcionários que se desautorizavam mutuamente e fracassos de planejamento. Mas seria extravagante pensar que esse regime não tinha “ordem” nem objetivos.

Os conflitos internos tinham uma função: levava os subordinados vigiarem-se mutuamente em vez de conspirar contra a cúpula e a tornavam necessária como árbitra em última instância, assegurando a “ordem” enquanto poder absoluto do Führer – ao preço, é claro, de comprometer a eficiência da máquina produtiva e militar quando se tornou mais necessária.

O discurso oficial desse regime também nunca foi muito coerente. Às vezes enfatizava seu pretenso caráter popular e socialista, outras seu anticomunismo. Ora dizia defender valores cristãos, ora queria ver uma nova religião nazista esvaziar as igrejas tradicionais.

Alguns líderes defendiam a supremacia do sangue nórdico, outros condenavam as tentativas de dividir o povo alemão em tipos raciais. Setores que queriam atrair os povos do leste para sua causa eram desautorizados por outros que os queriam expulsar para a Sibéria.

Mesmo assim, seria estranho dizer que o nazismo, em nome do qual milhões mataram e morreram, não era uma poderosa ideologia. Guardadas as proporções, observações análogas podem ser feitas sobre a ditadura militar brasileira e seu “pensamento”.

Supervalorizar os personagens e subestimar a importância dos processos que os envolvem é outro ponto fraco deste trabalho. Ainda na introdução, Gaspari atribui o recuo do regime em geral e o fim da censura em particular ao “complexo mecanismo de uma decisão imperial do presidente Ernesto Geisel”.

A vontade de jornalistas, proprietários de jornais e “qualquer tipo de pressão direta sobre o governo” podem ter contribuído pouco para o desfecho. Mas terá sido por coincidência que a ditadura recuou depois de ter fracassado financeiramente e caído na dependência do mercado financeiro global?

Será por acaso que todas as ditaduras do Cone Sul – incluindo as que iniciaram seu ciclo quando Geisel já governava ou se preparava para assumir – sofreram crises econômicas e fizeram sua abertura econômica e a transição para um regime civil praticamente ao mesmo tempo? De tão imperial, a decisão de Geisel foi acatada não só por Figueiredo, como também por Pinochet e pelas juntas da Argentina e do Uruguai?

Não se trata de atribuir o desenlace apenas às ordens de um imperador colocado mais acima, mas de entender como os militares latino-americanos do final do século XX, se não tomaram palácios de governo só porque assim quiseram, também não saíram por um ato de pura vontade.

Quando poderes econômicos nacionais e transnacionais confluíram para apoiar a ditadura, jornalistas – e mesmo proprietários de grandes grupos de comunicação – pouco puderam fazer. Sua posição mudou quando as mesmas forças perderam a confiança nos velhos métodos e sentiram a necessidade de outros porta-vozes e executores.

Nesse momento, foram os militares que pouca escolha tiveram além de organizar silenciosamente sua retirada, ou cair atirando. Foi o que se decidiu na crítica tarde de 12 de outubro de 1977. A vitória de Geisel – além de evitar muitas mortes inúteis – foi importante por permitir a saída relativamente honrosa. Tivesse sido Frota o vitorioso, o fim poderia ter sido tão desastroso e humilhante quanto foi o da Argentina do general Leopoldo Galtieri, bem sucedido em depor seu superior “moderado”, Roberto Viola.

comentários(0)comente



Marcianeysa 04/09/2021

Ditadura
Livro interessantíssimo, que mostra os bastidores do movimento que orquestrou o golpe de 1964. São tantos personagens que as vezes me perdi em algumas partes. Ansiosa pelos demais capítulos.
comentários(0)comente



Amós 28/03/2024

Desorganização militar que extermina desorganização de esquerda
O livro A Ditadura Envergonhada é o primeiro livro de uma série que trata sobre o Regime Militar Brasileiro (1964-1985) escrita pelo autor ítalo-brasileiro Elio Gaspari. Gaspari não tem formação de historiador, sendo na verdade um jornalista que se dedicou a estudar e pesquisar o tema a partir, principalmente, de arquivos das Forças Armadas e de diários/entrevistas com figuras envolvidas no governo militar. A série inicialmente iria contar com apenas quatro livros e falaria com mais profundidade sobre atuação de Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel nos bastidores dos governos militares, porém após mais de uma década de sua conclusão o autor lançou um quinto livro que aborda a descompressão e fim do regime militar. Sua produção é muito criticada por historiadores que se dedicam ao estudo do Regime Militar devido a sua parcialidade na análise da deflagração do Golpe; da luta armada das esquerdas; e da visão elogiosa aos ditos “moderados” das Forças Armadas; e pela falta de um método historiográfico criterioso na escrita do texto, que por vezes divaga entre a análise estrutural do assunto; abordagens rasas de temas paralelos e o relato de causos e anedotas do período. Crítica essa que é válida, mas que não tira o valor da obra, que segue sendo uma das principais referências para o estudo do tema.
O primeiro livro, A Ditadura Envergonhada, aborda com uma análise pormenorizada sobre os meses anteriores à conflagração do Golpe e os primeiros anos do Regime Militar, que serviram principalmente à sua própria estabilização e institucionalização. A compressão do início da Ditadura passa necessariamente pelo entendimento de como a falta de estabilidade na política e economia nacional; o profundo envolvimento dos militares na política (tanto a esquerda quanto a direita); a interferência dos Estados Unidos da América, que inflama e patrocina movimentos anti-esquerda; e a total falta de união entre as esquerdas são pontos chave a derrubada de João Goulart. Apesar do esforço do presidente de preencher postos chaves da hierarquia militar com pessoas de confiança, o chamado “dispositivo militar”, não bastou para impedir o avanço da ala golpista quando chegou a hora. Cabe lembrar também que já haviam ocorrido outras tentativas de golpe nos anos anteriores e como manda a tradição política/militar brasileira, ninguém foi punido por isso e tudo foi varrido para debaixo do tapete. Esse costume de impunidade é muito importante de ser percebido pois será ponto chave do funcionamento do regime pelos próximos vinte anos. O famoso discurso de Jango na Central do Brasil e a promessa da Reforma de Bases são o ponto de virada que inicia a movimentação golpista dentro dos quartéis brasileiros. No evento em que ocorre esse discurso participam diversos militares reconhecidamente de esquerda e há nas palavras um comprometimento com o ideal de pegar em armas para defender as reformas e as possíveis tentativas de golpe. Isso porém ficou somente no discurso.
Liderados por militares que anteriormente já haviam se envolvido em tentativas golpistas, o golpe se inicia com uma coluna de tanques que parte de Juiz de Fora, cidade mineira fronteiriça ao estado carioca, em direção à capital do país, que à época ainda era o Rio de Janeiro. As semanas anteriores ao golpe foram dedicadas à costura de alianças e acordos entre militares e civis que desejam o fim do governo trabalhista, tudo isso com muito apoio da embaixada dos Estados Unidos da América e de setores das elites econômicas brasileiras. Através do diplomata Lincoln Gordon, os americanos prometeram um amplo apoio na luta contra uma possível reação e o reconhecimento imediato ao futuro governo militar que seria criado com o golpe. O presidente João Goulart era visto com muita desconfiança pelo Departamento de Estado dos E.U.A, à época liderado pelo infame Henry Kissinger, e havia ainda um clima de medo e histeria anti-comunista devido à recente Revolução Cubana, que havia expulsado o ditador-fantoche Fulgência Batista e estabelecido um governo socialista na ilha do Caribe. Lyndon Johnson, presidente norte-americano à época, temia que Jango pudesse se tornar um novo Fidel Castro, liderando um governo nacionalista pautado pelo desenvolvimento nacional e na luta contra interesses imperiais americanos e estrangeiros.
O golpe foi iniciado na madrugada do dia 31 para o dia primeiro de abril e durante um dia inteiro houve um total imobilismo das forças legalistas que apoiavam João Goulart, que não queriam iniciar um conflito fratricida dentro do país por um presidente que também não queria se comprometer com a luta armada. O discurso de defender as reformas de base foi somente um discurso e nenhum setor da sociedade estava realmente comprometido com esse plano. O que se viu de fato foi um presidente acovardado, que vendo a movimentação golpista tomar o país, se recusou a reagir e proibiu aqueles que desejam de o fazer. Nos dias seguintes à irônica data de 1º de Abril, Jango irá se refugiar primeiro em sua fazenda no Rio Grande do Sul e posteriormente fugirá para o Uruguai e depois para Argentina, onde irá morrer exilado de forma melancólica em 1976. Enquanto o Golpe era concretizado, o que se viu dentro das esquerdas foi um total imobilismo.
A ala mais radical do PTB ( Partido Trabalhista Brasileiro, principal herdeiro do legado varguista) será liderada por Leonel Brizola numa pífia tentativa de reação mas que rapidamente será derrotada, com seu líder se auto exilando no Uruguai. Por outro lado, o PCB (Partido Comunista Brasileiro), que à época era o maior partido da esquerda radical e contava com centenas de milhares de militantes dentro das Forças Armadas, sindicatos e movimentos sociais, não reage ao golpe de maneira alguma, acreditando na tese difundida pelos militares que a governo militar seria breve e apenas faria uma transição até a próxima eleição. Também havia um temor dos comunistas de que Jango seria um novo Getúlio Vargas e que iria perseguir o Partido se continuasse na presidência. PCB e PTB nutriam uma desconfiança mútua, em grande medida herdada do período do Estado Novo varguista e lhes faltava a percepção, hoje óbvia, de que somente a criação de uma aliança tática entre ambas as forças seria capaz de impedir o avanço golpista.
Logo nos primeiros meses do regime militar se organiza nas casernas brasileiras um verdadeiro expurgo de todos os militares identificados com as esquerdas. Expulsões e prisões sumárias, torturas e assassinato serão os métodos utilizados pelas Forças Armadas para depurar qualquer voz contrária ao novo regime que se estabelecia As primeiras vítimas foram os militares que eram reconhecidamente esquerdistas. Destaque aqui ao relato da tortura e prisão do afamado militante comunista Gregório Bezerra, que foi preso nos primeiros dias e torturado brutalmente num quartel de Recife, sendo arrastado por um jipe pelas ruas da cidade. Junto a isso, centenas de militares irão sofrer destinos parecidos. Existe uma curiosa diferenciação na repressão desses indivíduos, havendo um corte de classe muito claro. De maneira geral, o que se viu foi que os oficiais das Forças Armadas identificados com as esquerdas serão expulsos, enquanto praças na mesma situação, serão torturados, presos ou mortos. Após esse surto inicial de violência e repressão dentro dos quartéis as Armas irão se voltar contra o próprio povo, perseguindo políticos da oposição que resistiam em reconhecer o novo governo e a figuras públicas que criticavam o golpe.
O primeiro presidente militar brasileiro será Humberto de Alencar Castelo Branco, eleito de forma indireta pelo Congresso, é visto como o mais moderado de todos os ditadores que passaram pela cadeira presidencial durante o Regime Militar. Consegue se firmar como nome para governar após grande disputa interna dentro do Alto Comando das Forças Armadas. Logo nesse primeiro momento se vê uma divisão não muito clara entre os “moderados” e os assim chamados “linha-dura”. O conceito do que é ser moderado ou linha-dura irá mudar no correr da Ditadura, mas de maneira geral os moderados defendiam que o Regime deveria ser breve e que deveria somente estabilizar o país até a próxima eleição. Já os linha-dura tinham claramente em seu plano um regime militar de longa duração que desse conta de exterminar qualquer pensamento de esquerda ou progressista que existisse no país. Em grande medida, a ala linha-dura era herdeira de nomes e ideais do antigo partido fascista brasileiro, a Ação Integralista Brasileira (AIB). Em relação a repressão e ao uso da tortura, ambas alas irão apoiar abertamente ou fingir desconhecimento dos fatos.
Castelo Branco estava comprometido com a ala moderada das Forças Armadas, e defendia que o governo deveria ser devolvido aos civis o mais rápido possível. Porém, sua atuação como presidente será fraca e sua morte precoce irá impedir que esse plano se concretizasse. Seu governo foi fraco devido, principalmente, a sua falta de pulso firme para lidar com a indisciplina de seus subordinados e o caótico cenário político pós-golpe. Desde o primeiro dia do Golpe, se assiste dentro dos quartéis uma “anarquia militar” (termo cunhado pelo próprio autor), em que a regra sagrada das F.A., a sacralidade da hierarquia, será jogada pela janela. Oficiais guiados por ambições e dissabores pessoais irão atuar de forma a atender seus próprios interesses carreiristas. Junto desse quadro caótico, irão nascer os órgãos de inteligência do Exército voltados para a repressão interna. O principal órgão será o SNI (Serviço Nacional de Inteligência), fundado e liderado pelo próprio Golbery, ele nasce com objetivo de centralizar o comando das forças de repressão e de organizar de forma útil as informações obtidas a partir de investigações, prisões e torturas. Esse objetivo porém é natimorto, nunca tendo sido concretizado e criando um cenário em que a “Inteligência” das Forças Armadas estava muito longe de conseguir centralizar as informações obtidas pelos inquéritos realizados. Tal confusão organizacional chega ao ponto que as Forças Armadas, Polícias Civis e Militares do Estado de São Paulo não tinham nenhum tipo de compartilhamento das descobertas que eram feitas. Além disso, o SNI esbarrava no jogo de interesses que regia a alocação de recursos e pessoal dentro do Regime. Casos de tortura e corrupção serão sempre abafados para evitar o desagrado de figurões da Ditadura.
O uso da tortura na repressão executada pelo Regime Militar merece um comentário a parte. A prática da tortura nunca foi oficializada, nunca houve uma ordem ou determinação por parte dos comandantes das Forças Armadas de se praticar tortura para obtenção de informações ou confissões de presos políticos. Porém, essa abominável prática irá se enraizar dentro dos porões da Ditadura a partir de uma lógica ambígua que tentarei descrever agora: uma vez que a tortura não existia oficialmente, não há necessidade de proibí-la, visto que, em tese, ela não existia. Porém, quando confrontados por denuncias de tortura divulgadas pelos jornais e que foram realizadas contra os presos políticos que foram libertos, a tortura será sempre negada pelo Regime ou sua culpa será jogada no colo dos seus perpetradores, sendo definidas como casos isolados ou excessos individuais. Nunca haverá investigação ou punição para nenhum desses denunciados. Por outro lado, os chefes dos órgãos de inteligência que perpetuavam essas práticas, serão premiados com medalhas e títulos de honra dentro das Forças Armadas. Não à toa, nomes como o de delegado Fleury e Brilhante Ustra foram das pessoas que mais ganharam medalhas durante o Regime. Esse quadro ambíguo de negação da realidade combinada com a premiação de quem executava essas torturas irá criar um solo fértil para o crescimento da indisciplina dentro dos quartéis brasileiros, visto que os militares envolvidos diretamente na prática da tortura se colocavam acima do restante dos quadros do Exército, desrespeitando as patentes miltitares e assim indo frontalmente contra a “sagrada” hierarquia militar. O autor traz diversos relatos, depoimentos e documentação oficial que corroboram essa tese e uma passagem simbólica disso é referida pelo autor a partir de uma entrevista feita por ele com Brilhante Ustra, que afirmou que “para que os tenentes possam ter suas aulas de Tática em perfeita paz, outras pessoas precisam sujar suas mãos” (adaptado por mim).
O livro caminha para seu fim abordando o começo da luta armada por parte das esquerdas. Uma vez que a ideia de que o regime seria breve cai por terra, o PCB e as alas radicais do PTB irão iniciar a formação de guerrilhas urbanas e rurais. Nem PCB e nem PTB irão aderir oficialmente a isso, ocorrendo na verdade diversas rachas que irão criar uma miríades de organizações paramilitares, que de forma mais ou menos autônoma e independentes, irão pegar em Armas para enfrentar o Regime Militar. Se o sistema de inteligência da Ditadura era falho devido a desorganização, mais falho ainda era a organização da luta armada. A diversidade tática e organizacional dos que pretendiam derrubar o governo militar por si só apontava a falha central das esquerdas: sua desunião. Apesar de algum apoio cubano, soviético e chinês, nenhuma das organizações terá duração longa e a maior parte delas será extinta a partir da chegada de Costa e Silva à presidência.
Seu governo será marcado por iniciar a fase mais dura da repressão da ditadura. Nome forte da ala linha-dura, ele irá conquistar a liderança do país a partir de sua influência dentro da alta cúpula das Forças Armadas e o apoio das indivíduos diretamente envolvidos com a repressão e a tortura. Porém, sua inabilidade em lidar com o cenário político nacional propiciou um endurecimento da repressão, como fica claro na seguinte passagem: “Como observa Brian Crozier, especialista inglês no combate à subversão e discreto visitante do SNI em 1964: ‘Os bons governos previnem o conflito, os maus o estimulam; os governos fortes o desencorajam, e os governos fracos o tornam inevitável’. O governo do marechal Costa e Silva era mau e fraco.”(pg 304) Durante seu governo ocorrerá o assassinato do estudante Edson Luis, fato que deu muita força para a oposião civil, que tomará as ruas em passeatas, greves e movimentações na sociedade. Isso criou o cenário perfeito para a imposição de um novo dispositivo para ampliar a repressão e concretizar o que era desejado pelo ala linha-dura: uma ditadura longa, que não pretendia devolver o poder aos políticos civis e que iria exterminar qualquer pensamento de esquerda que existisse no Brasil. Esse dispositivo infame atende pelo nome de Ato Institucional nº 05 e sua criação encerra o primeiro livro dessa série. O livro acaba com um um clima de inconclusão, visto que é só o primeiro da série que pretende analisar o Regime Militar, mas abre espaço para que a obra que lhe dá sequência explique melhor essa nova fase de repressão inaugurada pelo AI-05.
comentários(0)comente



ka19 11/07/2009

Muito barulho por nada.
Quando lançado me empolguei para comprar todos os volumes. Ainda bem que não o fiz.

Até penso que o livro, por um lado, é produto de vasta pesquisa, porém, por outro lado, não apresenta toda essa pesquisa. O ponto de vista do autor fica muito explícito.

O pior, é que o livro foi muito comentado e comprado. Assusto-me com o fato de que muitos podem se utilizar do livro como material de estudo de história.

Basicamente, achei o livro tendencioso.
comentários(0)comente



*Ana Paula* 09/08/2011

Me decepcionei triplamente com esse livro: primeiro porque ansiava por ele há 10 anos, segundo porque todos comentários que li a respeito dele diziam ser maravilhoso e terceiro porque comprei em livraria, ou seja, paguei muito caro.

Achei muito mal escrito e super confuso. A pesquisa do autor foi imensa, sem dúvida (até porque ainda tem mais 3 volumes), mas parece que ele simplesmente jogou no texto tudo que pesquisou e aonde caiu, ficou.

Além disso, existem erros bobos do tipo "foram dez militares, sendo dois blablabla, quatro blablabla e um blablabla" (só um exemplo)... ah, então foram sete e não dez.


Talvez seja bom para historiadores, para quem já tem um bom conhecimento da época. Por inúmeras vezes ele chegava a conclusões e eu pensava "tá, e dái? o que isso tem a ver?", como não ia ter resposta mesmo, seguia em frente. Só li até o final porque sou teimosa com livros.

Apenas a cronologia ficou bem organizada e interessante. É uma parte importante do livro.
Também interessante é o anexo com a relação de tropas e hierarquia do exército, porém ficou falha.
comentários(0)comente



Gu Vaz 25/11/2023

Degradação
O primeiro volume de uma série de decisões militaristas baseadas na degradação quase total da constituição que conhecemos como Ditadura. Através de uma narração ágil, proporcionada por Elio Gaspari, e uma cronologia que avança e retrai à medida que preenche cada lacuna de informação de um tempo sombrio e adverso, este livro é a prova de que o homem, quando pode, estica até ultrapassar qualquer traço de humanidade que lhe é esperado sob uma pretensa face. O que vemos aqui é o início envergonhado do horror à espera de dominação.
comentários(0)comente



Afonso74 11/09/2010

Elio Gaspari ainda faz parte de um seleto grupo de jornalistas que podem ser considerados independentes e que recebe críticas tanto do que se chama de esquerda quanto daqueles que se ainda conseguem se chamar de direita. E está de parabéns por esse empreitada de escrever quatro livros sobre o período 1964-85.

Sua leitura do período pré AI-5, que é o objeto desse livro, foi muito precisa em relativizar determinadas ações dos militares de Castelo Branco como não totalmente desprovidas de razão. Obviamente tal visão foi criticada pela nossa esquerda raivosa que prefere a visão maniqueísta e limitada de ver apenas os militares como bandidos e seus companheiros como heróis, sem relativizar que o período militar pré 68 foi muito diferente do pós 68, no qual o radicalismo tomou conta de ambos os lados.

Embora tenha sido o objeto inicial da pesquisa, o autor se estica na descrição do que Ernesto Geisel e Golbery (O Sacerdote e o Feiticeiro) faziam nesse período em passagens desprovidas de importância. Parece que o Sr. Gaspari não quis deixar de publicar todo o material de seus apreciados personagens.

comentários(0)comente



Fabrício Goulart 11/11/2015

Base nos militares
Ao contrário do que foi dito, não é um livro tendencioso. O que se tem é uma base nos militares - situação explicada pelo próprio autor no início da obra. Gaspari se baseou em relatos de quem estava no poder, e não de quem estava nos porões da ditadura.
Apesar disso, acredito que ele soube relativizar as coisas muito bem. Criticou os militares quando necessário e também a esquerda, em diferentes momentos. Tudo com base em uma ampla pesquisa, que é de tirar o fôlego.
A minha única ressalva está no estilo. A leitura se torna pesada, ao longo do livro, porque o autor joga muitas informações - algumas aparentemente sem conexão. Em alguns trechos é como se eu passasse, no modo automático, aguardando o momento de fazer paralelos.
Muito bom que se tenha algo tão cheio de dados, mas também bastante cansativo. Vale lembrar, ainda, que é o primeiro de quatro livros. É difícil falar de uma visão da ditadura - para criticar o autor - sem saber o que mais é abordado.
comentários(0)comente



MSc. Lipe 03/11/2019

Uma grande decepção
Para começar essa resenha eu me vejo na obrigação de citar um trecho de Graciliano Ramos que aparece no livro: "Ladroagens, uma onda de burrice a inundar tudo, confusão, mal-entendidos, charlatanismo, energúmenos microcéfalos vestidos de verde a esgoelar-se em discursos imbecis, a semear delações."
Do ponto vista didático e histórico é uma obra pobre em vários sentidos. Primeiramente, o leitor deve se atentar ao fato de que as principais fontes do autor são dois ditadores. Ou seja, você estará lendo um livro sobre a ditadura militar no Brasil sob o ponto de vista dos cabeças do golpe de 1964.
E fica claro a linha de pensamento dessa gente; uma procura insana por inimigos imaginários: na impressa, no congresso, na cultura; o sempre presente fantasma do comunismo e outros devaneios e ilusões que advém da caserna. Contudo, a obra tem o nome de "Ilusões Armadas"... então acredito que o autor tem ciência desses "delírios".

Mas o ponto crucial a entender é esse: vale a pena ler um livro sobre o fascismo considerando como visão principal a de Mussolini, ou estudar o nazismo com um livro escrito por Hitler? Esse é o ponto!
Conforme a leitura avança você começa a perceber a racionalização para justificar os atos absurdos cometidos num dos períodos mais negros de nossa história. Ajuda a entender como parte dos militares vêem qualquer vislumbre de democracia como ameaça e explica um pouco o momento de histeria coletiva por qual estamos passando desde 2018.
Eu acho que faltou muita coisa no livro.
Não vi nenhuma referência a Tancredo Neves chamando os deputados golpistas de CANALHAS. Na maior parte o autor se refere ao golpe de 64 por "revolução", o que é uma falha gravíssima, pois tenta mais uma vez justificar o injustificável.
No ponto de vista histórico, aconselho a leitura da biografia do Marechal Lott. Nessa biografia há sim uma descrição muito mais viva e realista sobre a tortura que ocorria nos porões do regime.
Bom, por fim, como intitulei esta resenha, este livro foi uma grande decepção.
comentários(0)comente



Edson Camara 10/08/2021

Da derrubada de Goulart ao AI5
A Ditadura Envergonhada é o primeiro volume dos cinco que compõem este documento histórico da história recente brasileira.
Aqui é relatado os fatos, com referências documentais importantes e testemunhos de pessoas que viveram e participaram diretamente dos eventos.
Este volume cobre desde toda a movimentação, articulação e desdobramento do final do governo João Goulart, a derrubada e a tomada do poder pelos militares, passa pela administração de Castelo Branco, que queria devolver o governo a sociedade civil ainda em 1967, seu emparedamento político e a eleição “indireta” de Costa Silva até a decretação do AI5. O autor é muito bom relator, reporta a história sem tomar partido dando ênfase aos fatos, embora se permita, um ou outro comentário pessoal que em nada desabona o teor e a importância do tratado.
É um livro importante para quem deseja conhecer a história recente do Brasil.
comentários(0)comente



RALPH 29/01/2021

A história politica brasileira parece ser cíclica
É assustador imaginar que vivemos momentos tão turbulentos depois do Golpe de 64, e o mais inacreditável é que estamos reproduzindo os mesmos erros da ditatura em pleno século XXI. A tristeza é indescritível. O livro é excelente, o Elio tem uma escrita dinâmica, fugaz, digna dos melhores thriller policiais, texto envolvente, convidativo, totalmente oposto aos livros chatos, enfadonhos de historia do colegial.
comentários(0)comente



Lucas 14/10/2022

Vivendo e aprendendo: a ditadura militar brasileira mostra que nunca deve se ter vergonha de quem se é
O jornalista ítalo-brasileiro Elio Gaspari (1944-) lançou em 2002 um projeto audacioso: narrar, através de (inicialmente) quatro volumes, a trajetória da ditadura militar que governou o Brasil por mais de duas décadas, através de estudos e investigações iniciadas em 1984. Pomposo em sua concepção, realista em seu resultado: o primeiro desses volumes, A Ditadura Envergonhada, é preciso, desapaixonado e completo.

O autor, a qual presenciou alguns dos fatos por ele narrados e que atualmente é colunista do jornal Folha de S. Paulo, é tratado com relativo descaso por opositores atuais do regime ditatorial brasileiro: têm-se diante de Gaspari um rótulo imbecil de que ele escreve com neutralidade diante de um tema que segundo os mais radicais não comporta nenhuma vírgula de defesa, nem mesmo isenção. Não que o jornalista faça algum tipo de ovação para os personagens ou fatos importantes daqueles tempos nefastos: ele apenas não "bajula" personagens santificados por certos setores ideológicos que ainda hoje remanescem, sob a bandeira de grupos políticos distintos.

O que Elio Gaspari faz é lançar luz sob aspectos ocultos do regime e aqui ele se apropriou da proximidade e até mesmo da amizade que ele desenvolveu com, especialmente, dois personagens centrais da ditadura: os gaúchos e generais Ernesto Geisel (1907-1996), chamado por Elio de "Sacerdote" e Golbery do Couto e Silva (1911-1987), que recebeu do autor a alcunha de "Feiticeiro". De fato, estes dois são tratados com um olhar mais benevolente em alguns momentos, mas a história universal, não apenas a escrita por Gaspari, mostra a participação efetiva deles no regime. Geisel e Couto e Silva, além de dois dos mentores do golpe (e não revolução, já que o próprio Geisel é enfático em afirmar que o ocorreu em 1964 foi um movimento) foram ministros do primeiro presidente do regime militar, o general cearense Castello Branco (1897-1967) e perderam espaço no governo subsequente, do também general Artur da Costa e Silva (1899-1969). Essa perda de espaço deveu-se essencialmente pelo choque com os ideais mais radicais de Costa e Silva, famoso por ter baixado o assombroso Ato Institucional nº 5, no final de 1968. Os outros livros da coleção de Gaspari, no entanto, ainda vão demonstrar mais fortemente a presença destes dois personagens, já que Geisel, por exemplo, foi presidente da república entre 1974 e 1979 (o mais sensato dos dirigentes nacionais no período ditatorial, na minha visão).

A Ditadura Envergonhada, em suas camadas mais visíveis, não apresenta nada de novo nos grandes eventos da época para quem gosta de debruçar-se sobre a história aqueles anos (este primeiro livro trata da deposição de João Goulart em 1964 até o AI-5, no final de 1968). Os grandes acontecimentos, como a deposição de João Goulart (1919-1976), o dramático desfecho da vida de Castello Branco, as intensas revoltas do eterno ano de 1968, o supracitado AI-5, entre outros eventos famosos, as quais são discutidos por Gaspari, não são necessariamente o âmago da escrita: sua preocupação está nos gabinetes e quartéis, especialmente, onde as decisões eram tomadas. Como João Goulart foi deposto de uma hora para outra, sem tanques ou invasões, como as Forças Armadas foram sutilmente se envolvendo cada vez mais no arcabouço governamental, como as torturas foram se tornando instrumentos institucionalizados de coação e domínio, e, especialmente, como todos estes e outros absurdos foram se desenvolvendo dentro da República, acobertados por uma espessa capa de corrupção, são os focos narrativos mais destacáveis pelas linhas de Elio Gaspari.

Ao oferecer um texto isento de qualquer viés, especialmente os de natureza acusatória, tão justificadamente comuns no contexto atual brasileiro, Elio Gaspari é capaz de ampliar o entendimento tanto daquele indivíduo que abomina o regime de exceção implantado como daquele cidadão crente na necessidade da ditadura, para exterminar qualquer ameaça de comunismo. De uma forma geral, até mesmo o adjetivo empregado pelo autor para nominar esse primeiro volume da sua série reforça este entendimento. Diferentemente de outros países, onde a ditadura chegou "com os dois pés na porta" (o mais ilustrativo caso aqui por perto ocorrendo no Chile em 1973 ou Cuba em 1959), por aqui ela começou com ares de transitoriedade, de ser um regime que iria encerrar um viés populista que impregnava a República desde a eleição de Getúlio Vargas (1882-1954) em 1950 e devolver o governo a civis "mais qualificados". Oficialmente, por exemplo, o congresso nacional funcionou até 1968, assim como a liberdade (restrita) de expressão. Homens como Castello Branco e Ernesto Geisel (este apenas inicialmente, diga-se) eram defensores deste caráter momentâneo do regime. Mas na queda de braço com a chamada Linha Dura, acabaram pisoteados por um grande contingente das Forças Armadas sedento não por ordem, mas sim por interesses próprios.

A máscara de vergonha da ditadura, que queria ser um regime de exceção mas a qual ainda hesitava, caiu definitivamente no ano de 1968, quando no Brasil houve respingos de uma tendência mundial: a rebeldia ora romântica ora destrutiva dos jovens, normalmente universitários, aflorou violentamente, em protestos e atos de vandalismo diante de um mundo que vivia o auge da Guerra Fria e da Guerra do Vietnã. Com a mudança do perfil de opositores do regime (que antes disso eram apenas comunistas, as quais eram e é hoje ainda muito fácil atrelar à imagem de simples banditismo), o regime se viu na obrigação de se instalar definitivamente como uma ditadura. É onde este primeiro volume termina: quando a ditadura perde a vergonha de ser chamada assim, bate no peito (e na mesa) e toma para si a rigidez tão comum aos regimes ditatoriais, com o fim de direitos e garantias fundamentais. O AI-5, baixado em dezembro de 1968, é, neste sentido, um marco: é uma faca que dilacera o país e o joga num violento regime de exceção e corrupção que vai durar por pelo menos dez anos.

O leve pudor democrático que ainda subsistia cai, mas não é apenas o descortinar dos chamados "Anos de Chumbo" que marca esse novo período: as prisões arbitrárias, torturas, inquéritos sorrateiramente maquiados, condenações sem fases processuais completas, perseguições políticas e censuras são a ''cara" desse tempo, mas elas escondem algo tão gravíssimo quanto. Trata-se da corrupção incutida em praticamente todos os setores e órgãos governamentais de todas as esferas. Um dos maiores méritos d'A Ditadura Envergonhada é a desmistificação de que naquela época não haviam negociatas, desvios, roubos, indicações políticas sem critério... Termos como meritocracia ou cidadãos de bem eram despudoradamente deturpados, através de uma enormidade de exemplos que as investigações de Gaspari trouxeram.

Elio Gaspari reúne aqui todas essas informações oriundas de documentos e de depoimentos obtidos por ele mesmo, junto a nomes comuns da ditadura (ele chegou a entrevistar o polêmico general Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), que coordenava o órgão de "segurança interna" do estado de São Paulo), o que lhe confere um peso ainda mais real diante de sua narrativa. Além disso, um olhar cru, jornalístico e nada apaixonado, simultaneamente a um estilo mais descritivo e menos quantitativo, gera neste este primeiro volume um escudo contra vociferações irracionais, que inevitavelmente podem surgir de todos os espectros políticos atuais. O tempo dirá se esta toada se mantém nos volumes seguintes, mas a primeira impressão é a melhor possível.

A Ditadura Envergonhada é o pontapé inicial de um projeto historicamente rico. Mostra os primeiros anos de um regime que nasceu com um propósito de acalmar os ânimos, viu que isso não era possível, se envergonhou, mas soube perder a compostura para atingir objetivos ocultos. Sem que haja o endeusamento de nenhum dos múltiplos lados dessa história, Elio Gaspari muito contribui para uma relevante parcela da história nacional formada por trevas e a qual é tratada com um inexplicável saudosismo de tempos em tempos.
comentários(0)comente



Beatriz 03/01/2021

Incompleto
O livro tem seus pontos positivos, porém deixa muito a desejar na descrição política e transforma o regime em uma nave extraterrestre alheia a política e a sociedade, um astro q orbita sem relações, sem ideologia (como ele tenta imputar) e sem base social e política para governar. Desta forma, ele trata levianamente as tensões políticas que culminaram no golpe, as relações políticas internas no Brasil durante esse período e torna todas as tentativas de manter a fachada democrática do período q esse livro trata em apenas uma palavra, sem qualquer demonstração de suas implicações e o papel real dela nos acontecimentos e reações, como se ela fosse apenas liberdade de expressão e sufrágio universal.
E mesmo q considere q seu interesse era retratar os militares da ditadura, ainda sim há muita brecha na forma como aborda o histórico e a forma de pensar desses militares e os tranforma em pessoas fracas e desgovernadas e até psicopatas (oq não excluo).
Parece que foi um trabalho de recolher as opiniões dos militares e não ir além, não acrescentou o q faltou para deixar a história completa. Porém, o Gaspari escreve bem e demonstra capacidade para descrever os fatos e a forma como funciona a hierarquia e as relações militares. Talvez falte mesmo sair do muro pra dar peso a narrativa.
comentários(0)comente



50 encontrados | exibindo 1 a 16
1 | 2 | 3 | 4


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR