Thiago 25/05/2016
Salman x Rushdie
"A fotografia só via o que estava diante dela, e por isso um fotógrafo jamais conseguiria captar a verdade dos grandes pampas argentinos. “Darwin observou, e Hudson corroborou”, Borges escreveu, “que essa planície, famosa entre as planícies do mundo, não deixa uma impressão de vastidão em alguém que a olha do chão, ou a cavalo, uma vez que seu horizonte é o horizonte do olhar e não vai além de cinco quilômetros. Em outras palavras, a vastidão não se encontra em cada visão dos pampas (que é o que a fotografia é capaz de registrar), mas na imaginação do viajante, em sua lembrança dos dias de marcha e da previsão de muitos dias mais.”"
Era assim que Salman Rushdie se sentia, uma figura chapada cuja vastidão tinha sido solapada desde o dia em que fora condenado à morte por conta de um trecho de seus Versos Satânicos, no qual, em determinado capitulo, ele faz alusão a um trecho supostamente excluído do Alcorão, em que Maomé recorre à intercessão de três deusas pagãs de Meca.
Condenado como blasfemo, ele recebeu sentença de morte com uma fatwa (espécie de pronunciamento islâmico com validade legal que determinadas autoridades religiosas têm poder de emitir) proclamada pelo xá do Irã Ruhollah Khomeini).
A partir deste dia, 14 de fevereiro de 1989, sua vida mudou completamente. E durante os 13 anos que viveu sob pesadas restrições, o desafio mais complicado que se impunha a ele era ter de justificar, como se não fosse vítima de pesada censura religiosa, que sua luta era pelo direito de ser, tanto quanto qualquer outro ser do mundo todo, soberano no que compete à sua escrita. De não ser calado pela opressão religiosa, que se revela, ao longo do trajeto, não só aliada do fundamentalismo, mas também de rabo preso com questões políticas e econômicas.
Parece elementar, não? Mas não é. Salman foi tachado de arrogante, grosseiro e aproveitador, inclusive pela imprensa ocidental, que muitas vezes colocava o assunto sob panos quentes, e exigia até mesmo do acusado um pedido de desculpas ao islã para apaziguar a questão. Sem contar a omissão do governo, não só o britânico, mas de vários outros países, incluindo os EUA, que relegavam enfrentar a situação de frente, como se a ameaça à liberdade e a tentativa descarada de execução de um cidadão do "mundo livre" fosse um problema menor perto das questões mais importantes (e rentáveis) que as negociações com o Irã demandavam.
Por isso a sensação de ser um retrato dos pampas argentinos. O Rudshie pintado pelo mundo, privado de si próprio, mal dando conta de fazer entenderem o que era o mais elementar ali, o que estava de fato em jogo, vivia em severa reclusão. Foram longos anos de luta. Companhias aéreas se recusavam a transportá-lo, alguns países faziam o máximo esforço para não recebê-lo, seu livro foi banido de vários países e ele não era autorizado a entrar na Índia, local onde nasceu. Trancado em casa, cercado de policiais, ele era Joseph Anton (que veio de Tchekhov e Conrad, dois dos seus escritores preferidos), e tinha que se esconder no banheiro quando alguém aparecia para fazer manutenção ou limpeza do seu próprio lar.
Ele era incômodo, as pessoas não gostavam que o governo britânico gastasse "exorbitantes quantias" para protegê-lo de seus próprios erros. Um dia Ian McEvan, questionado sobre isso, declarou que gastavam muito mais com o Príncipe Charles e o pior era que o herdeiro nunca tinha escrito algo interessante. Questões menores que o seu direito de escrever sem amarras ocupavam praticamente todo o espaço que o caso recebia.
Pessoas morreram por conta do celeuma. O tradutor japonês foi assassinado, o italiano, esfaqueado Na Noruega, o editor do livro levou três tiros, mas também sobreviveu. Sem contar as várias pessoas mortas nos países de regime islâmico durante os protestos contra o livro.
Foi um longo cabo de guerra que trouxe à baila uma questão que ainda hoje não foi superada (só ver o que aconteceu a Houellebecq com seu Submissão, ou ao Charlie Hebdo). Por isso é muito bom ler, compreender e se solidarizar com a causa de Salman - e também de todos os outros que são calados injustamente. Liberdade não pode ser um conceito relativo.