Rê 22/06/2017
Difícil dizer... no fim valeu!
Terminei de ler este livro e mesmo depois de algum tempo ainda não sabia ao certo o que o “dito cujo” suscitava em mim. Mas “dito cujo?!”, certamente alguns de vocês perguntarão e eu lhes respondo: não num sentido pejorativo, mas ocorre que, sinto-me completamente à vontade para chamá-lo assim dada a frontalidade que o autor desenvolve sua história, permitindo-nos essa intimidade. Através de uma escrita franca e sem muitos artifícios retóricos João Ricardo Pedro em sua obra de estreia foi um transgressor dos estilos narrativos habituais, “O Teu Rosto Será o Último” possui uma estrutura muito peculiar, a história nos é contada em curtos capítulos, organizados em sete partes, independentes entre si e que muitas vezes ocorrem em tempos e lugares distintos, no entanto, é impressionante como o autor estabelece entre eles um elo de ligação, entrelaçando os acontecimentos entre si. Outra das suas subversões é o uso abusivo da pontuação e das repetições, conferindo-lhe um estilo singular. Mas tenho que confessar, por vezes me aborreceu.
“Fechou as torneiras. Mergulhou na banheira. Deixou-se ficar. Submersa. Acima da linha de água: apenas o nariz e dedos grandes dos pés. Abaixo da linha de água: o silêncio. Às vezes um pulsar. O coração. Depois, de novo o silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio.” (Pág. 121)
Não há como ficar indiferente diante dessa obra, que ao mesmo tempo nos impacta e perturba ou nos arranca risadas com trechos hilários e completamente surreais. João Ricardo Pedro nos conta a história da família Mendes através das memórias de três gerações, marcada de muitas maneiras por um regime político autoritário, inspirado nos ideais fascistas que durou mais de 40 anos e que se encerra com o golpe de estado conhecido em Portugal como a Revolução Dos Cravos, ponto de partida, da narrativa. No entanto, apesar deste ser o pano de fundo de toda história, são, na verdade, os recortes de vidas, o cerne do livro, aonde o autor vai nos apresentando aos personagens, Augusto Mendes, um ilustre e nobre médico que escolhe viver numa longínqua aldeia,
“(...) na casa do demónio, onde até as cobras de lá fogem.” (Pág. 34)
como que para exilar-se e de lá assiste o mundo através das cartas enviadas por um amigo.
“(...) Até lá, foi o avô que lhas leu. Várias vezes, como se tratasse de verdadeiros contos de aventuras. (...) Mas, ao ler, pela primeira vez todas as cartas de Policarpo, Duarte experimentou outra surpresa ainda maior: as suas cartas preferidas como ouvinte estavam longe de ser as suas preferidas enquanto leitor.” (Págs.37 e 39)
Seu filho, António Mendes, era militar, enviado durante a ditadura às missões nas colônias africanas e teve seu juízo moído pelas lembranças do horror dos conflitos. Duarte, o terceiro na descendência é a quem mais a história se dedica, narrando episódios de vários momentos de sua vida. Extraordinário pianista, tem com a música uma relação incomum, não era efusivo, ou caloroso, sua música brotava sábia.
“Duarte conhecia aquela música por dentro. Intimamente. Como se conhece a casa que se habita, a ponto de se poder caminhar às escuras dentro dela (...) quando os dedos começavam a tatear (...) nunca o faziam com o deslumbramento de uma descoberta, com a excitação de quem se lança numa aventura, mas coma a serenidade de quem se movimenta num espaço que lhe é confortavelmente familiar.” (Pág. 69)
No entanto, a mesma música inúmeras vezes lhe impôs situações conflituosas, numa delas se deu por uma relação muito improvável dada às diferenças sociais e culturais, mas que se mostrou intensa e incondicional entre Duarte e seu amigo apelidado de Indio, por quem ele nutria profunda admiração, porém em certa ocasião, nem um, tampouco outro conseguiram superar um constrangimento ocorrido, e apesar de Duarte ser um grande beethoveniano, depois disso ele nunca mais tocou Beethoven.
Apesar de se tratar, parafraseando Nelson Rodrigues, da “vida como ela é, ”O Teu Rosto Será o Último”, não é uma literatura acessível, possui uma sofisticada estrutura, que exige atenção do leitor para tecer a teia dos acontecimentos aparentemente isolados. Talvez por isso, ou por outras das suas “subversões” que citei acima, demorei a me envolver com a leitura e até mesmo por um tempo o coloquei no modo “stand by”, depois de o retomar, algumas passagens ainda chegaram a me entediar, porém nada que me impedisse de chegar ao fim. Ainda bem que não o fiz, pois o final é surpreendente, João Ricardo Pedro soube bem, construir - desconstruindo, “segredos” de família. Uma obra interessante, que vale a pena conhecer, assim como “Por Este Mundo Acima” também da coleção Novíssimos da editora Leya, novamente indico a leitores experientes e versáteis, que gostem de ler romances menos convencionais e de conteúdo denso, àqueles que gostam de escrever, é uma ótima oportunidade para novos aprendizados linguísticos.