Marino 08/02/2010
A jornada de Lázaro
O maratonista Francisco Lázaro entrou duas vezes para a história das Olimpíadas. Ele fez parte da primeira delegação portuguesa a participar dos jogos, em 1912, na Suécia, e foi o primeiro atleta a morrer durante uma prova, a 14 de julho daquele ano, depois de correr 30 quilômetros. Lenda do esporte luso, Francisco Lázaro é também personagem de um romance surpreendente, publicado pela Editora Record: "Cemitério de pianos", do português José Luís Peixoto.
Lázaro é o personagem central de uma narrativa repleta de dramas, tragédias, pequenas alegrias e aqueles segredos que as famílias costumam ocultar sob o manto das aparências. Mas não se trata de uma biografia. Peixoto inspirou-se nesse personagem denso, mas do qual pouco se sabe, para criar um outro personagem, fruto das circunstâncias da ficção. Manejando as ferramentas da literatura com enorme precisão, Peixoto se dá essa e outras liberdades e revela que a sedução do texto não está necessariamente na economia de palavras, mas no bom uso delas.
"Cemitério de pianos" é resultado de uma refinada ourivesaria. O romance é narrado por três homens da família, de três gerações diferentes, cujas vozes eventualmente se confundem ou se cruzam. Embora falem em primeira pessoa, às vezes adquirem onisciência, relatando o que não presenciam, e nem a morte é capaz de calá-los. Suas falas se misturam às de personagens solitários e ecoam em ambientes escuros, eventualmente iluminados por um sorriso tímido. O texto é dividido em blocos, e as vozes se alternam entre um bloco e outro, de forma que o leitor precisa ficar atento aos pequenos detalhes, que Peixoto lhe oferece, pouco a pouco, no interior das frases. A história ganha sentido à medida que as peças se encaixam. Montar esse quebra-cabeças é um dos fascínios da leitura.
A maior parte dos personagens não tem nome, mas apenas caracterização — são referidos como "meu tio", "minha mulher", "o marido de minha filha", etc. Oito personagens são nomeados, os quatro filhos e os quatro netos do primeiro narrador, núcleo da família e do próprio romance. Um dos filhos, e também um dos narradores, é Francisco Lázaro. Os personagens-narradores são marceneiros, e a oficina onde exercem sua atividade passa de pai para filho, o que confere uma aura de imutabilidade ao fluxo da história, a não ser quando um fato trágico ocorre e quebra o clima.
Técnica apurada
Dentro da marcenaria fica o cemitério de pianos do título, e em torno dele e dos mistérios que o envolvem a família se pereniza. É como se houvesse uma melodia conduzindo e embalando história e linguagem, feita de música e poesia. Além de romancista, José Luís Peixoto é poeta, o que se revela na forma como constrói a narrativa, palavra a palavra. Os recursos de linguagem evidenciam uma técnica apurada, e dificilmente funcionariam na mão de artesão menos talentoso. O texto ganha dramaticidade com a repetição de frases e expressões, e o farto uso de dois pontos em alguns trechos traz fluência e emoção.
Peixoto nasceu em Galveias, norte alentejano, em 1974. Seus romances foram publicados na França, Itália, Bulgária, Turquia, Finlândia, Holanda, Espanha, República Checa, Croácia e Bielo-Rússia, além do Brasil. Ele já esteve várias vezes na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e costuma incluir elementos da cultura brasileira nos livros que escreve.
O escritor já publicou sete livros de ficção e três de poesia. No Brasil, a editora Agir lançou, em 2001, "Nenhum Olhar", prêmio Literário José Saramago, instituído em 1998 pela Fundação Círculo de Leitores, de Portugal, e destinado a autores com idade inferior a 35 anos. "Cemitério de pianos" oferece ao leitor brasileiro a oportunidade de contato com um dos mais talentosos nomes da nova geração da literatura portuguesa. Não seria má idéia publicar aqui também seus livros de poesia.
[resenha publicada no jornal Correio Braziliense]