André Siqueira 03/06/2022
À Frente
Mike é um humano criado em Marte por marcianos, sem contato com qualquer Sapiens até que retorna ao planeta de seus pares; em solo terrestre é colocado em choque com uma sociedade completamente diferente da que experimentava em seu planeta natal (chocante escrever isso) - nós com nossa inveja, corrupção e violência; eles com seu equilíbrio pacífico e grokância perfeita. O enredo parece simples, e é. Não existem grandes reviravoltas e a própria narrativa me soa como plano de fundo para que o autor debata suas visões de como é o mundo em oposição a como ele pensa que deveria ser.
Se vivesse no universo de Heinlein seria, indubitavelmente, frustrado pela impossibilidade de servir como secretário a Jubal - talvez a mais icônica personagem da obra. Presto tributo, examino minhas raízes e tento às transgredir: Jubal representa o ideal que ensinaram a geração de meus pais a almejar e me atingiu - ainda que de forma atravessada; as consequências e resquícios desta escolha são visíveis em muitas de nossas práticas cotidianas e ferem mais do que inspiram.
Infelizmente o passado não é peso morto do qual basta um remelexo bem dado e pronto, caiu. Antes nó górdio. Amarra inquebrável que teima em recusar qualquer possibilidade de desenlace. Felizmente, a arte concede, entre suas infinitas aplicações, a possibilidade de permitir a visão particular de um fragmento desta corda, possibilita perspectiva sobre o que veio antes para nos preparar para o que pode vir depois e entender o que é agora.
Heinlein é um intérprete de seu tempo. Ler “Um estranho em uma terra estranha” é um - perdão pela anáfora - é um mergulho em uma terra, hoje, estranha a partir de uma perspectiva não-tão-estranha. Um vislumbre do combustível que alimentou seu tempo, espécie de narrativa do horizonte possível de sua própria época: observar de que forma Heinlein constrói sua ideia de utopia é pista para compreender os sonhos que o moveram, assim como as influências que dali nasceram. As ingerências de sua obra na geração hippie são inegáveis, houve a criação de grupos para partilha da água em ambientes deslocados de cidades e outros exemplos (hoje) esdrúxulos de tratar esta ficção como livro sacro.
Abundam elogios e críticas, começo pela segunda.
Mesmo em seu universo utópicos as mulheres estão constantemente relegadas a um papel secundário - mesmo as mais brilhantes mentes não passam de secretárias -, fetichizado e normativo, chega-se ao [*****]mulo de esconder e impedir o envelhecimento e a existência de corpos não-padrão, notável enfoque no sobrepeso, sempre representados como algo anti-naturail e permissivos a humanidade, logo impossível; a relação entre pessoas do mesmo sexo também é tabu insuperável, principalmente entre homens; outro elemento corrente e ilustrativo do período é a aceitação pacífica da morte de poucos po muitos: o assassinato em massa perpetrado como política aceitável - quiça necessária - para qualquer governo sadio.
Exemplifico: Jubal é filósofo, médico, advogado, cientista e tantas outras profissões, é uma espécie de velho branco libidinoso que superou a própria mortalidade e sexualidade mas, mesmo assim, não abre mão da boa vida (e vista) que lhe concede seu harém de três belas secretárias e a casa sempre aberta a visitas que não pisem em suas rosas e aceitem seus princípios-nada-ortodoxos.
E é esta negação a ortodoxia que sinto vontade de tecer elogios. A sátira a religião - simplificada na parábola da minhoca - e aos costumes de qualquer período são cômicas, a negação tácita de qualquer possibilidade de conhecimento verdadeiro a respeito da divindade é um tapa-sem-luva a qualquer leitor dogmático e converteu o autor em divindade benigna ou maligna a depender de a quem é endereçada a pergunta.
De forma generalizada é um convite à dúvida e a não-aceitação-plácida como método de se alcançar a felicidade, antes ela só pode ser produto do “grokar” extenso, intencional e trabalhoso - ao contrário do pecador arrependido que é passivamente elevado ao reino dos céus. Aliás, o termo grokar é uma das grandes genialidades da obra: mistura de ciência, filosofia, religião; seu significado é contextual e não pode ser resumido ou compreendido a partir de nossa limitada linguagem.
Concluo: recomendo a leitura, crítica; o perigo de levar Heinlein a sério é grande, embora acredito que tampouco ele o tenha feito. A atmosfera da década de 70 é uma brisa refrescante e a obra funciona bem como ficção, marcada e considerada a distância histórica de sessenta e tantos anos que nos separa de sua produção.