Maria16577 04/05/2023
Anna Karenina acompanha algumas dezenas de cidadãos russos, embrenhados por laços de parentesco e coleguismo, todos mais ou menos parte da nobreza da época. Vai migrando de núcleo para núcleo, todos em algum momento interligados, sem, aparentemente, qualquer preocupação com a criação de ganchos, ou mesmo de um ritmo, no geral, que possa prender ou chocar o leitor. É como uma câmera que vai transitando por entre essas relações de forma praticamente imparcial, sem buscar gerar qualquer efeito específico. Simplesmente transmite eventos, importantes ou não, dessas interações.
Mas é aí que a vida acontece, da forma mais definitiva, profunda e traiçoeira. O que vai se revelando com o tempo são essas pessoas extremamente aflitas por dilemas profundos e aterrorizantes, buscando, com um certo grau de ingenuidade, dar um rumo minimamente confortável para as suas almas, sem machucar ninguém ou contradizer sua própria crença sobre si mesmos.
Anna Karenina, por exemplo, sofre principalmente de culpa, e tenta desesperadamente ser feliz para fazer os seus erros valerem a pena. Levin, por outro lado, quase mais protagonista do que Anna, sofre por uma ansiedade social e timidez profunda, e não consegue se permitir a felicidade, mesmo tendo uma vida praticamente perfeita.
Os personagens secundários também têm aflições profundas. Alexei Karenin sofre com a angústia de precisar demonstrar um orgulho que lhe é exigido da sociedade, mas que não propriamente é seu, após ser traído por Anna. Vronsky, tomando uma decisão impulsiva de se relacionar com Anna, sofre com o arrependimento egoísta, e desconta nela suas inseguranças.
Kitty sofre com reflexões profundas sobre o seu papel, sobre como ser boa para o próximo, sobre como ser um lugar seguro àqueles à sua volta, deixando de se preocupar com seu próprio bem estar, enquanto sua irmã, Dolly, sofre (num dos momentos mais bonitos do livro), com um arrependimento violento ao se deparar com o seu envelhecimento e com todas as marcas da maternidade.
Todos se reúnem, porém, apesar do abismo em que se encontram, nesses eventos sociais, em que precisam se portar como cidadãos preocupados e informados. Parecem felizes, mas todos atuam, dissimulando as terríveis e extremamente particulares preocupações e ânsias que não parecem conseguir superar, já que, como na fase célebre, “todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”
Por precisarem atuar, deixam de alcançar um mínimo de entendimento mútuo. Apesar de todo amor e afeto que sustenta essas relações, estão todos, no fundo, sempre sozinhos.
Obs.: As primeiras centenas de páginas dão um certo trabalho. Como disse acima, o livro parece meio sem propósito por um tempo, e muitos dos acontecimentos parecem triviais. Mas juro que tudo é importante. O objetivo é construir uma teia de relações, e personagens com uma carga imensa, que vai determinar seus comportamentos um tanto peculiares diante das dificuldades que surgem.
Obs. 2: Uma outra dificuldade são os nomes, claro. O livro parece exigir que o leitor adivinhe ou se lembre (em 1000 páginas), por exemplo, que Levin e Kostia são a mesma pessoa, assim como Stefan é Stiva e é também Oblonsky, e que Vronsky também se chama Aliócha. Por vezes são usados primeiro nome, apelido, ou sobrenome, ou, ainda, sobrenome de solteira ou casada. É recomendado ter algum guia para a leitura, mas com o tempo tudo faz sentido.