spoiler visualizarZelinha.Rossi 26/01/2017
Trem noturno para Lisboa” é um livro capaz de nos encantar profundamente pela leveza e beleza de suas reflexões. Inicialmente, pensamos que a obra tem como protagonista Gregorius Raimundus, um solitário professor de um liceu em Berna, na Suíça, apaixonado pelas palavras e línguas (especialmente as antigas), que vivia uma vida que nada tinha de extraordinário. Pensamos que a história será sobre a grande mudança operada na vida de Mundus ao encontrar uma mulher portuguesa misteriosa em uma ponte, que parecia buscar o suicídio após ter lido uma carta e que, após ter sua atenção desviada para o desastrado professor, acaba escrevendo um número de telefone em sua testa. Após sair da sala de aula inesperadamente em busca da mulher, Mundus acaba parando em um sebo e encontrando um livro de um escritor português, “O ourives das palavras”, de Amadeu de Prado. A partir daí, a história muda completamente. Já não é em busca da mulher que Gregorius inicia sua jornada rumo a Lisboa (embora em algumas vezes ao longo do livro o episódio seja relembrado pelo protagonista), eles não se encontram novamente e ele nem sequer liga para o número escrito por ela. A jornada passa a ser em busca do escritor e, após descobrir que este está morto, a partir da descoberta da história de um homem cuja vida, os pensamentos e o amor pelas palavras pareciam tão intensos.
A partir de relatos dos familiares de Amadeu (suas irmãs Adriana e Melody) e de seus amigos (João, Jorge, Maria João e Estefânia) e também de cartas e escritos não publicados do próprio Prado, sua história vai, aos poucos, se delineando, o que acaba sendo algo que nos mantém presos à leitura porque as descobertas nem sempre são lineares, o que vai deixando muitas lacunas que pretendemos preencher avidamente ao chegar às próximas páginas. Um homem com um enorme peso imposto à sua vida e ao seu destino pelo desejo da mãe de que sempre superasse as expectativas e do pai de que pudesse curá-lo de sua terrível doença, Amadeu se tornou um médico que buscava sempre ajudar os outros, mesmo os que não podiam pagá-lo. Um homem defensor até às últimas consequências da lealdade, ávido por viver e desesperado pelo aneurisma que possuía e que podia inesperadamente acabar com sua existência, escrevia reflexões sobre si mesmo, os outros, a religião, a alma, talvez tentando encontrar as respostas que tanto queria sobre a vida. Um homem também marcado pela culpa de haver salvado a vida de um torturador da ditadura portuguesa, buscou se redimir juntando-se ao movimento de resistência, do qual já participava seu amigo inseparável desde os tempos do liceu, Jorge. E foi em Estefânia, uma mulher com uma memória prodigiosa que guardava as principais informações do movimento (e que acabou separando para sempre os amigos, ambos irremediavelmente apaixonados por ela), que Amadeu finalmente encontrou a possibilidade de, enfim, viver uma vida plena, a qual foi frustrada pela própria Estefânia, que se sentiu assustada com tanta avidez. Sem Estefânia, Amadeu parecia não ter mais motivos para continuar vivendo e o aneurisma acabou se rompendo pouco após a separação.
Enquanto vai “juntando as peças do quebra-cabeças” da vida de Amadeu, os fatos da vida de Mundus também nos vão sendo apresentados: a separação de sua mulher Florence, o desejo frustrado de viver em Isfahan, suas dúvidas, sua solidão. O personagem vai crescendo e modificando ao longo da narrativa, tanto fisicamente quanto com relação a seus hábitos: de um homem inicialmente muito reservado e desleixado, muda seu modo de vestir e sua aparência, se torna mais empático, faz muitos amigos. Paralelo a isso, surge um problema de vertigens e ocasionais perdas de memória, o qual acaba permanecendo inexplicável. Depois de desvendar toda a história de Amadeu e despedir-se dos amigos portugueses, Gregorius retorna à Berna para fazer exames, mas não chegamos a saber o resultado dos mesmos: a história termina com sua entrada na clínica. Isso é compreensível quando percebemos que o protagonista da história foi, na verdade, Amadeu. Mundus era apenas o instrumento do qual valeu-se o autor para chegar até Prado.
O que não achei compreensível foi o término da história de Amadeu. Para quê as últimas cartas, nas quais ele revela a casualidade do encontro e da relação com a esposa falecida (Fátima) e sua fadiga com a relação sufocante que a irmã que o idolatrava (Adriana) lhe impunha? Não houve nada de novo ou de muito extraordinário nestas revelações finais, embora houvesse sido feito um grande suspense sobre essas cartas, guardadas há tanto tempo e nunca lidas por Maria João. Desnecessário na minha opinião este final, portanto. Foi como se uma história tão cautelosamente tecida tivesse tido um desfecho muito aquém do merecido.
De qualquer forma, o que fica gravado em nós do livro não é o suspense sobre a vida de Amadeu ou a tentativa de mudança de vida de Gregorius (embora estes elementos tenham sido excelentes). O que fica marcado são as belíssimas reflexões sobre a vida, o autoconhecimento, o medo da morte, a solidão, a lealdade, entre outras, as quais são inesquecíveis.