laura2367 04/05/2023
?Precisamos Falar sobre Kevin?, romance de ficção publicado em 2003 e escrito por Lionel Shriver, é um livro que aborda a história de Kevin, um garoto que cometeu em 1999 um massacre escolar. A história toda é contada a partir da perspectiva da mãe de Kevin, Eva Katchadourian - uma armênia e até então uma bem sucedida escritora de livros turísticos. Por meio de cartas para o seu marido e pai de Kevin, ela desabafa sobre o presente e relembra o passado em busca de obter respostas para a atual situação em que tudo se encontra, se questionando sobre aquilo que o seu filho se tornou.
No começo, a leitura é bem lenta, torna-se quase como se fosse um diário pessoal do passado de Eva. Entretanto, tais relatos dela, que voltam antes mesmo do nascimento de Kevin, se mostram essenciais para entender todo o contexto da formação da família deles. A mãe, uma mulher que, após anos desfrutando de viagens e do estado de não ter compromissos maternais, resolve (influenciada pelo seu marido - um típico americano conservador - e acompanhada por diversos conflitos internos sobre ser mãe) enfrentar a gravidez tardia como uma nova página de sua vida.
Desde que a decisão da maternidade foi afirmada, os sentimentos antagônicos foram se intensificando em Eva, e basicamente ao longo do crescimento de Kevin, o relacionamento deles sempre se demonstrou um enigma. Ele era, desde recém nascido, inclusive, um serzinho difícil, que rejeitou o leite materno e gritava anormalmente para um bebê. Na ótica de Eva, ele demonstrava uma aversão à mãe. Ela pressentia que ele notasse seus embates sobre o primogênito e é como se ele falasse ?é recíproco? ou ?eu vejo o como você se sente sobre mim". Entretanto Eva nunca foi má com o filho, ela era sim uma mãe mais fria, desconfiada e que tentava tanto lidar com todas as dificuldades de ter uma criança com comportamentos destoantes, como lidar com seu próprio papel, como ela influenciava na vida de Kevin - discussão em que muitos momentos ela reflete sobre sua culpa no cenário infeliz.
O pai de Kevin, Franklin, apresentava uma visão diferente da de Eva, ele sempre quis ser pai e a história muito se marca com os conflitos e discussões perante ao comportamento e personalidade do filho. Ao longo das ações do garoto - muitas atípicas -, enquanto a mãe enxergava a maldade que crescera em seu filho, Franklin na maior parte não via nada demais, sempre tratava como se Eva estivesse exagerando, fosse implicância, como se o emblema fosse ela desde o início.
O que instiga o leitor a refletir, e não se limitar apenas às influências parentais (o que muitos se limitam a fazer quando julgam os casos de massacres nas escolas) é o fato do autor inserir diversos aspectos na abordagem desse tema. Todo o contexto do culto às armas nos EUA, o destaque a violência, a glamourização midiática com jovens autores de massacres, a educação que não consegue amenizar as ocorrências, questão penitenciária de menores, os distúrbios mentais na sociedade, a influência de outros casos e de grupos extremistas. Além de apresentar um olhar para toda a situação que a mãe passa após os crimes do filho, não somente o sofrimento como ?Por que meu filho fez isso?? mas como a angústia diante das famílias das vítimas, uma sociedade que te cobra respostas que nem você mesma - como mãe - é capaz de responder e como se é sempre procurado alguém para culpar. Pois, apesar de Eva considerar diversos fatores, ela ?conhecia? o filho, via sempre o seu tom afrontador, manipulador, cínico, um distúrbio muito forte de conduta, ela via a maldade dentro dele ao longo da vida, e tinha consciência que não eram apenas fruto dos fatores externos.
Há um trecho muito interessante no livro que ela escreve: ?De modo que qualquer um que tentasse retratá-lo como a vítima negligenciada de um casamento em que ambos os pais só pensavam em suas carreiras teria uma batalha insana, e, independentemente do que ele houvesse intuído, nós não éramos divorciados: até aí, nada de cópia. Ele não era membro de nenhum culto satânico; a maioria de seus amigos também não frequentava a igreja, o que tornava improvável que a falta de religiosidade despontasse como um tema cautelar. Ele não era alvo de caçoadas ? tinha seus amigos insípidos e seus contemporâneos faziam o impossível para deixá-lo em paz ?, de modo que a história do pobre desajustado perseguido, ou do ?temos que fazer alguma coisa para acabar com a intimidação nas escolas?, não iria muito longe. Ao contrário dos incontinentes mentais por quem ele sentia tamanho desprezo, aqueles que passavam bilhetinhos virulentos na aula e faziam promessas extravagantes a seus confidentes, Kevin mantivera a boca fechada; não havia criado um site homicida na Internet nem escrito redações sobre explodir a escola, e o mais criativo dos comentaristas sociais teria muita dificuldade para exibir uma sátira sobre as picapes esportivas como um daqueles imperdíveis ?sinais de advertência? que, hoje em dia, destinam-se a levar pais e professores vigilantes a telefonar para linhas diretas confidenciais. Mas o melhor de tudo era que, se ele conseguisse levar a cabo toda a sua proeza com uma simples balestra, a mãe dele e todos os amigos sentimentalóides que a cercavam não poderiam exibi-lo diante do Congresso como mais um caso clássico em defesa do controle das armas de fogo. Em suma, a escolha que ele fez da arma teve a intenção de garantir, da melhor maneira possível, que a quinta-feira não significasse absolutamente nada."
Outro fator interessante na história é com a entrada de Celia, quando Eva ainda decide tentar ter um outro filho e a garotinha se demonstra com personalidade totalmente antagônica a de Kevin.
É uma leitura que te envolve, traz emoções e conflitualidades, que te coloca a analisar toda a situação e te faz questionar sobre um assunto tão intrigante. Particularmente, apesar do teor de suspense/dramático, achei tudo mais enigmático do que amedrontador, afinal, apesar da figura totalmente destoante de Kevin, é uma problemática que tem se tornado, infelizmente, muito presente nos dias atuais e o livro ajuda a ampliar o tema, a analisar mais facetas da problemática. O livro, inclusive, se conecta e cita muitos massacres e figuras do mundo não-ficcional, como por exemplo o mais conhecido, o de Columbine, e diversas ocorrências dos anos 90.
Ademais, o final da história, a parte clímax, é angustiante e impactante (e mais conflitante ainda nas páginas finais), mas não de forma muito solta, ela é construída, sendo também o resultado de todo o desenvolvimento. Ou seja, para quem estiver com receio (que nem eu estava) de ficar muito assustada com o livro, fique tranquilo, como experiência pessoal posso dizer que só mais na parte final que fica bem mais apreensivo com a desvenda das tragédias.
Na minha opinião também é um livro sobre crise existencial e busca pelo sentido da vida, mesmo que entrelinhas, é possível notar isso nos comportamentos de Kevin. E Eva enxergava isso, um vazio no filho, via através das camadas de ações deturpadas de Kevin. E, apesar do muito desconforto da relação deles, é inegável que eles tinham uma ligação. De certa forma pude compadecer em vários aspectos da história.
Com certeza é uma leitura que recomendo.
Curiosidades: O livro também foi adaptado para filme em 2011, tendo como protagonistas a Tilda Swinton (Eva) e Ezra Miller (Kevin).
- Trechos marcantes:
"A verdade é que, se eu decidisse que era inocente, ou decidisse que era culpada, que diferença faria? Se eu chegasse à resposta certa, você viria para casa?"
?Mas Celia cometeu o erro mais comum das pessoas de bom coração: presumiu que todos os demais eram iguais a ela.?
?De certa maneira, Mary parecia confusa sobre a natureza do problema. O problema não era quem seria punido pelo quê. O problema é que a filha dela estava morta.?
?O segredo. Como sempre, o segredo é que não existe segredo algum."