djoni moraes 29/01/2021
Quão fundo o ser humano pode chegar no poço alegórico da vida?
Karl Ove Knausgård é talvez o autor norueguês mais conhecido da cena literária mundial dos últimos anos, e se posiciona em quase todas as conversas sobre autoficção e estilos narrativos célebres (informação nada consensual). Sua obra mais conhecida é, indubitavelmente, os seis volumes da série Min Kamp que compõem a narrativa de sua vida, marcada no seu início por este livro: A Morte do Pai.
Uma das características mais marcantes do estilo narrativo de Knausgård é a capacidade de ir e voltar no tempo de sua narrativa, nos localizando em uma atmosfera que mostra uma mesma pessoa (no caso, ele mesmo), mas em momentos tão diversos de sua formação que fazem com que pareçam personagens totalmente diferentes: o Karl Ove criança; o Karl Ove adolescente/jovem; o Karl Ove pai; o Karl Ove neto; o Karl Ove escritor. De qualquer forma, a faceta mais marcante, pelo menos neste volume da série, é a do Karl Ove filho. A relação dele com seu pai, um homem de humor bastante instável, fechado e com quem teve um relacionamento baseado na desconfiança e no medo, é tão imbricada quanto fascinante. Em alguns momentos Knausgård nos faz sentir um pouco "xeretas" demais, como se estivéssemos vendo algo que não devíamos ver. Pausa para a catarse número um: não é assim grande parte dos relacionamentos entre pais e filhos é? O constante desconcerto com a presença do outro?
Não é um livro com muita ação. Aliás, se você quer uma biografia movimentada e cheia de ação e superação, não é aqui. Aqui vemos um homem de meia idade rememorando partes de sua vida e de sua relação com seu pai, através da visão do cotidiano. Acho que nesta característica repousa uma das coisas mais fascinantes do estilo narrativo de Knausgård: a forma de narrar o cotidiano. Pois é no cotidiano, no pentear do cabelo do outro, no sorriso taciturno que esconde alguma coisa, no "você quer que eu faça um chá", no olho roxo de uma mãe, na angústia do primeiro beijo, na visão da primavera ao se apaixonar: é só através do olhar banal que podemos conhecer o mais íntimo de uma pessoa.
A história do pai de Knausgård é bastante emocionante e bastante triste. Inclusive, vale dizer que o livro pode ter vários gatilhos, principalmente para quem sofreu em lares disfuncionais por pais alcoólatras. Não entro em detalhes sobre isso porque, né, acho que se você leu até aqui, você se interessa em saber porque a história da vida de uma pessoa deve iniciar com quatrocentas páginas que versam sobre a morte de um pai.
E não só a morte do pai, em si, mas sobre a morte no geral. E é nesse ponto que o autor guarda a sua joia mais preciosa: nas reflexões sobre a morte. Em alguns momentos, alguns pensamentos ecoaram na minha cabeça desde o momento em que fechava o livro e pegava-o novamente no colo para continuar a leitura. Com certeza esta foi uma leitura que criou uma curiosidade genuína (quase infantil, porém não necessariamente imatura) sobre a morte - e não no sentido voyeurista/sádico, mas num sentido quase sagrado e, ao mesmo tempo, cotidiano. Por que temos tanto medo da morte? Não necessariamente de morrer, em si, mas da própria morte. Por que queremos nos desfazer do corpo o mais rapidamente possível, tirá-lo de nossa frente, a diferença de outras culturas não-ocidentais que optam por conviver mais tempo com o cadáver por perto?
Vivendo no mundo atual (e escrevo estas linhas no meio de uma das maiores epidemias virais, com o número de mortos acima dos dois milhões de pessoas), com certeza falar sobre morte e mortos é um assunto bastante delicado e incômodo. No entanto, a maior reflexão que fica deste livro permeado de dor, luto, dúvida, raiva e morte, é sobre vida.
[...] Agora eu via somente a ausência de vida. E já não havia diferença entre aquilo que um dia fora meu pai e a mesa onde ele jazia, ou o chão onde estava a mesa, ou a tomada na parede embaixo da janela, ou o fio que ia até a luminária ao lado dele. Pois os seres humanos são apenas formas em meio a outras formas, as quais o mundo não cessa de reproduzir, não só naquilo que tem vida, mas também naquilo que não tem, desenhado na areia, na pedra e na água. E a morte, que eu sempre considerara a maior dimensão da vida, escura, imperiosa, não era mais que um cano que vaza, um galho que se quebra ao vento, um casaco que escorrega do cabide e cai no chão" [...]