Gabriel 15/01/2020
Apesar de possuir - em sua maioria - críticas positivas e de ter sido considerado como um dos grandes clássicos do século XXI, Quando Ela Acordou, escrito por Hillary Jordan não chegou a se tornar uma febre mundial e, aqui no Brasil, o livro vendeu uma quantidade tímida de cópias. Quando comparamos com o gigante O Conto da Aia que tem se tornado cada vez mais popular graças a sua adaptação televisiva pelo serviço de streaming Hulu, devo começar essa resenha dizendo que Quando Ela Acordou merecia o mesmo hype que a distopia escrita por Atwood. Lançado em 2013 e trazido para terras nacionais pela editora Bertrand Brasil, o livro possui uma excelente história com muita identidade em que nada se assemelha a obras do gênero, mas que trazem reflexões importantíssimas e cada vez mais próximas sobre o futuro de nossa sociedade, o que muito nos preocupa.
Na narrativa criada por Jordan, o estado não é mais laico e nos deparamos com uma América totalmente teocrática em que os criminosos não são julgados e mantidos em cárcere privado de acordo com a gravidade de seus crimes; Agora passam por um processo de modificação genético chamado de Cromagem em que sua pele é pigmentada de acordo com seu delito e novamente liberados para assim receberem o julgamento em que a população acredita ser o mais adequado, geralmente a morte. Denominados como Cromos, os condenados por furto e roubo recebem o pigmento amarelo, para os pedófilos e estupradores, a cor azul, enquanto que para os assassinos - a categoria mais grave - recebem o pigmento vermelho em suas peles. Após o procedimento, todos os Cromos passam por um período de 30 dias em que ficam trancafiados em uma cela e todas suas ações são gravadas e transmitidas em uma espécie de reality show para toda a população. Decorridos os 30 dias, os Cromos são novamente inseridos na sociedade e irão se manter com os pigmentos coloridos durante o período determinado no momento de seus julgamentos, vivendo sob fortes restrições em que não podem sair das cidades e precisam se apresentar aos centros de cromagem em períodos determinados para a renovação dos pigmentos. Os Cromos então tornam-se alvos de uma sociedade conservadora e autoritária e em meio a esse cenário altamente segregatório, a taxa de morte dos Cromos é altíssima e muitos deles não conseguem chegar aos finais de suas penas, sendo perseguidos por grupos de extermínio ou fanáticos religiosos. Hannah Payne acorda numa cela fria e escura, como uma Vermelha. Após seu julgamento, ela foi acusada a assassinato por abortar seu filho, fruto de um relacionamento extraconjugal com um poderoso líder religioso. Hannah opta por proteger a identidade do homem, já que nutre uma forte paixão por ele e uma revelação como essa, iria por fim a sua carreira meteórica e o casamento feliz em que se encontra. Ela então é condenada a se tornar uma Vermelha e precisa lidar com a rejeição de sua família e, principalmente de sua mãe, além de se encontrar sob julgamento de uma sociedade que acredita que o aborto é a pior afronta contra as vontades de Deus.
Após o período em que é confinada e exibida como um animal para todo mundo assistir, Hannah é liberada e não possui qualquer perspectiva de futuro: Os Cromos são tratados como a parte mais suja da sociedade e não conseguem encontrar trabalhos formais, moradias ou possuir qualquer outra condição minimamente aceitável de vida. Muitos Cromos procuram os centros de reabilitação em que são torturados e obrigados a reviverem seus traumas enquanto buscam a redenção perante a Deus. Sem saber muito para onde ir e com medo de encontrar membros do Punho de Cristo - um grupo extremista que caça e mata Cromos pela rua - Hannah dá entrada a um desses centros de redenção e lá começa seu verdadeiro inferno particular. É impossível descrever em palavras o quão mal me senti nesse momento da leitura, principalmente por tudo que a protagonista precisou enfrentar para que Deus a perdoasse por ter assassinado uma alma inocente, como é repetido incansavelmente para ela. A leitura é muito repulsiva e eu me via com um forte sentimento de revolta e asco, no entanto, esse havia sido a única maneira encontrada por Hannah para a redenção, visto que muitas Cromos, quando não eram mortas, eram sequestradas e serviam como escravas sexuais, levadas a exaustão e abusadas de todas as formas, até sua morte.
A partir desse ponto, não posso dizer muito mais a respeito da trajetória de Hannah em busca de salvação. Acredito que seriam muitos spoilers e esse é um livro em que se é necessário ser sentido e lido. Quando Ela Acordou, assim como todas as grandes distopias, trazem muitos pontos de reflexão acerca da sociedade. No caso de Hannah, a autora explora muito sobre como a sociedade patriarcal em que ela vive - e que, convenhamos, não é tão diferente assim da nossa própria - exerce total controle sobre seu corpo e suas decisões. Os conflitos religiosos envolvendo aborto e traição também são amplamente explorados e debatidos e a maneira com que Jordan consegue incluir esses temas em meio a essa narrativa tão densa é louvável. Ao contrário das inúmeras distopias, Hannah não se torna o rosto da revolução e irá encontrar uma maneira para a destruição desse sistema opressor e injusto. Muito pelo contrário: O livro apresenta uma jornada pessoal e particular por aceitação e, principalmente, perdão próprio. A narrativa de Hillary é muito impressionante e ainda que o livro possua uma temática difícil de ser engolida, foi incrível a rapidez com que fiz a leitura.
No meio de tantos pontos positivos, eu realmente não curti o final, aberto e interpretativo. Eu entendo que muitas obras são relativas e que cada leitor consegue interpretar o final a sua própria maneira de acordo com suas vivências e experiências, mas não curti a maneira com que ela finaliza a história e muito menos a maneira com que Hannah se mantém tão fiel a um homem que só prejudicou sua vida. Foi uma pequena falha - particularmente falando - mas que ainda sim irei indicá-lo para todos os meus amigos pois acredito ser uma leitura muito importante e atual, ainda que num primeiro momento, ela pode soar esquisita e distante da nossa realidade.
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