Gab 22/01/2023
?A liberdade virá no dia seguinte?
Eva Schloss é uma judia austríaca que no seu aniversário de 15 anos foi levada pela Gestapo e deportada para o campo de Auschwitz-Birkenau, em maio de 1944, com sua mãe Elfried Geiringer.
Em um relato profundo intitulado ?Depois de Auschwitz?, ela compartilha o terror em que ela e sua família foram submetidas desde que Hitler assumiu o governo da Alemanha em 1933. Já no prólogo ela sintetiza o objetivo de sua vida e história, lutar contra o antissemitismo e qualquer outra forma de discriminação de minorias e ?fazer o melhor para deixar uma marca no mundo?.
Ao longo de 28 capítulos somos apresentados à vida de Eva Geiringer que com seus pais e irmão ? Elfried e Erich Geiringer e Heinz Geiringer ? leva uma vida perfeitamente saudável e feliz na cidade de Viena, até que a Áustria é anexada ao poder alemão e os nazistas invadem o território.
?Nunca vou me esquecer do medo e do pressentimento que tive na noite em que os nazistas chegaram a Viena. Os soldados alemães foram recebidos na cidade com o toque dos sinos das igrejas e com a aclamação das multidões, enquanto bandeiras vermelhas gigantescas com suásticas negras eram abertas e postas em todas as janelas e edifícios e floresciam pela cidade como uma bandagem de flores venenosas?.
Antes da invasão nazista, Viena já havia se acostumado à gestão do prefeito Karl Lueger que era declaradamente antissemita e culpava publicamente o povo judeu por todas as mazelas que Viena pouco a pouco apresentava, como por exemplo, o aumento drástico da falta de moradia. Enquanto Eva relata suas memórias doces de infância em meio a uma sociedade que há pouco desmascarara seu antissemitismo, você como leitor se pergunta se de fato comportamentos como esses podem um dia ter ocorrido. Se um dia seu amigo ou vizinho, de um dia para o outro, odeia e culpa toda uma minoria.
?De repente os agradáveis amigos da minha infância se foram. Perguntava-me agora quem eram essas novas pessoas. Os comerciantes simples, condutores de bonde e supervisores de obras que imaginei conhecer estavam agora fazendo as declarações a favor da democracia desaparecerem. Será que essas eram as mesmas pessoas com quem a minha família havia vivido lado a lado por tanto tempo??
A pátria de Eva se tornou um lugar inviável para continuar a viver com sua família. E nesse ponto, de forma levemente elucidativa, você entende como se deu a invasão dos países europeus pela Alemanha. Enquanto os judeus já eram perseguidos na Áustria em 1933, Eva e sua família voltaram a ser perseguidos em sua mudança para a Holanda apenas em 1940, quando a Holanda, depois de bravamente lutar contra a rendição, se rende à ocupação. Foi neste ano que os nazistas começaram a introduzir leis contra os judeus na Holanda e Eva e sua família foram obrigados a se separar.
?Em Amsterdã, assim como em outros lugares, resistir ou colaborar com os nazistas eações com várias nuances. [?] Havia pessoas que ajudavam as famílias judias a se esconderem por bondade e boa vontade, ou porque os pastores das igrejas pediam que fizesse o que a consciência lhes impunha, mas também havia pessoas que ofereciam abrigo aos judeus apenas por dinheiro. Assim como havia pessoas que se faziam de cegas ao suspeitarem que você fosse judeu. Havia também pessoas que o denunciavam para receber alguns florins holandeses. [?] Nunca se sabia quem estava realmente do seu lado, quem o trairia ou mesmo quem poderia ser um dos temíveis ?caçadores de judeus?. [?] Na Amsterdã nazista, quase todo mundo era um estranho, e nunca se sabia quais eram as intenções das pessoas que o observavam através das cortinas de suas janelas ou moravam na casa ao lado. [?] às vezes as crianças que eram enviadas para fazendas [de abrigos] no interior do país eram exploradas; as mulheres e as garotas eram vítimas de violência sexual ou até mesmo forçadas a dormir com o homem da casa para que pudessem se manter escondidas.?
Eva se escondeu com sua mãe desde que a Holanda foi invadida enquanto seu pai e seu irmão estavam em outro abrigo no mesmo país. Mas foi no mês de maio de 1944 que a família foi levada para Auschwitz. A viagem tinha o único objetivo de exterminar todos os judeus e, como Eva compartilha em sua obra, o campo era apenas uma parte da diabólica engenharia do genocídio.
?Os nazistas tinham muito orgulho de Auschwitz, a menina dos olhos dentre todos os outros campos de concentração. Os principais líderes, incluindo Himmler, cuidavam pessoalmente da expansão e do desenvolvimento do campo. [?] Aquele maquinário da morte funcionou durante dia e noite até o final de 1944, cobrindo milhas à sua volta com cinzas. Às vezes os aparelhos quebravam por conta da sobrecarga, após terem matado mais de 1 milhão de pessoas.?
Este livro não é sobre a segunda guerra mundial, mas todo o seu material de pesquisa, unidos ao depoimento de uma valente sobrevivente, nos relembra uma realidade não muitos distante. Agora, dia 27 de janeiro, completaremos mais um aniversário do dia em que o campo de Auschwitz foi liberto pelo exército vermelho em 1945 dando a Eva uma nova chance de viver. Outros campos por exemplo, só seriam libertos em abril do mesmo ano.
Eva saiu da Áustria na infância como a menina esportiva e curiosa que lhe é apresentada nos primeiros capítulos, mas adentrou os tenebrosos portões de Auschwitz de forma muito diferente. Já havia sofrido a perseguição em seu próprio país, a excruciante experiência de viver em abrigos (incluindo um abuso sexual aos 9 anos de idade em um deles), escapou por duas vezes da seleção de Josef Mengele, conseguiu se esconder quando um SS a procurava para estruprá-la, foi submetida a longos períodos de fome, espancamentos, doenças e exaustão no campo de concentração.
Com a libertação do campo, Eva divide a situação pós-guerra de cada amigo citado em sua história, e os personagens que fizeram parte de sua leitura ganham desfechos ora inusitados, ora inimagináveis. O triste fim que cada família que a cercava levou, como também as sentenças merecidas de cada nazista no período pós-guerra, inclusive os que traíram sua família. Certa vez ouvi que não se estuda a Segunda Guerra Mundial em sua totalidade, mas em suas especificidades, das quais este livro está cheio. Cada sobrevivente contribui com sua visão e dolorosa experiência ao relatar os horrores do genocídio.
Eva conseguiu reconstruir sua vida com o passar dos anos e com o apoio de sua mãe e seu padrasto Otto Frank, pai de Anne Frank. Depois de Auschwitz os destinos se cruzaram e nós leitores conseguimos entender os dramas que uniram essas duas famílias diferentes e o quão valentes eles foram ao reerguerem suas vidas. Vemos Otto, um sobrevivente ferido e desolado, se dedicando à sua família enquanto trabalhava na publicação do Diário de Anne Frank. Vemos Elfried, a mãe de Eva, se desdobrando para ser mãe e todos os outros parentes que Eva perdeu. E vemos a própria Eva lidando com a depressão e com o desânimo de viver.
É inevitável se afeiçoar à pessoa que Eva foi e se tornou com o passar dos anos, impossível não lamentar cada uma de suas perdas e chorar por tantas vidas assassinadas. A vida pós-guerra trouxe suas dificuldades e revelou os traumas presentes no corpo e na alma, e, sendo nós tão diversos e ao mesmo tempo iguais, entendemos a dor que nos é revelada e nos aliviamos em saber que um grande legado surgiu a partir dele.
Além dos relatos de uma sobrevivente, Eva é a mulher que dedicou sua vida a ensinar sobre a história que jamais deve se repetir. Ao fim do livro conhecemos a família que Eva construiu, seu trabalho e seus projetos, o impacto de suas palestras ao redor do mundo e uma peça chamada And Then They came to me, de James Still, que conta sua história.
?A ideia de viver escondido para sempre realmente seria algo insuportável, então você se esconde até amanhã, depois até a semana que vem ou até mesmo até o próximo mês. Você sempre espera um dia a mais porque acha que a liberdade, certamente, virá no dia seguinte.?