Jacqueline 03/06/2014
A coragem é um modo de viver e não um conjunto de decisões
"Rosa não queria entender a desistência como forma
de amor. Se o amor existia tanto na coragem como
na cobardia, na entrega como na abstinência,na
palavra como no silêncio, não valia nada, não
acrescentava nada, acabava por se um elemento
neutro."
O livro promete mais do que cumpre. As personagens femininas são interessantes , mas pouco desenvolvidas. Ainda que Rosa continuasse sendo a protagonista, havia muitos desdobramentos possíveis para Farimah (uma iraniana que se casa com um ativista de direitos humanas soropositivo – que vê nessa situação a possibilidade de empreender a maior ação em prol da liberdade que poderia vislumbrar - para fugir do Irã), Luísa, Eva e Teresa.
A personagem de Gabriel também é pouco crível. Tudo bem que somos um poço de contradições e temos milhares de ambiguidades, mas alguém que tivesse tanto contato com a literatura como ele, dono de uma livraria, teria um horizonte de referências e expectativas um pouco mais ampliado do que mostram suas concepções de gênero e de casamento. Bastava que tivesse lido Madame Bovary para perceber outras camadas na vida.
De resto, como central temos a narrativa da vivência de um caso de amor fora do casamento e da busca pelo pai biológico que em um dado momento da história se cruzam.
Desde sempre, Gabriel diz que não vai se separar (e que nunca foi apaixonado por Rosa) e Rosa se alimentava dessa recusa – “habituou-se de tal modo à espera que começou a saborear a ausência” -, não sem sofrer, mas encontrava ali uma forte fonte de inspiração para seus fados. Projeta nessa impossibilidade, tudo o que queria de um homem e de uma relação, algo muito distante do que Gabriel e uma relação com ele pudesse dar. (Evidentemente que nossas relações são atravessadas por nossos desejos, projeções etc., mas seria possível contrapormos nossas percepções com um pouco do “real” (ou com outras percepções), algo como tomarmos um distanciamento para vermos o outro e o quanto podemos admirá-lo (ou não), amá-lo (ou não), compreender suas fraquezas - sem que isso nos ameace e que tentemos desesperadamente supri-las? Isso talvez nos ajudasse a discriminar que relações valem a pena na vida e que relações não valem.)
A língua não ajuda na descrição do que vive o casal de protagonistas: no português de Portugal não há meio termo: ou as pessoas fodem ou fazem amor. Eles desconhecem o termo “transar”. Excesso de puritanismo? Como diferenciar uma relação com uma mulher da vida com uma amante? Tudo parece errado e parecer estar no domínio da foda, que provavelmente não deve caber em uma relação conjugal.
De resto, há boas passagens sobre o amor, que ajudam a gente a entender o que acontece entre o fim e o esquecimento:
“O amor nasce num alçapão do tempo, desfaz-se quanto aterra com brusquidão sobre o tempo, mas só morre quando o tempo acaba de o desmembrar e devorar, pedaço a pedaço.”
E já que, no fundo se trata de dar conta de esperar o tempo passar, há conselhos de Ovídio espalhados pelo livro: “fugir da ociosidade, evitar os lugares frequentados pelo ser amado, evitar o convívio com pares de namorados, sair com os amigos e, acima de tudo, seduzir um sucessor, ainda que provisório, do amante ingrato” (impressionante como buscamos em outro nosso passaporte! Quando o outro acontece assim, dificilmente "dá certo"!. Nas horas mais difíceis, também vale fazer a lista dos defeitos.
Também a questão da solidão é tangenciada em algumas passagens: “a vida das pessoas parecia resumir-se à companhia; tudo estaria bem desde que ninguém estivesse sozinho. A solidão tornava-se um estigma social pior do que o envelhecimento.”
Vale o deslumbramento de Rosa com o Rio de Janeiro. Chega a afirmar que o sofrimento nessa cidade deve ser mais difícil (nunca cheguei a uma conclusão: por mais de uma vez, já andei a Atlântica e a Vieira Souto de ponta a ponta aos prantos, mas, paradoxalmente, isso não era acompanhado de peso ou desespero: será que a beleza e as contradições do Rio resultam em mais emoção e menos dor?)
O final da história também não convence: resoluções rápidas e sub-reptícias, fáceis, tiradas do bolso do colete. As personagens e a trama criada (e os leitores) não mereciam esse final!
Por fim, mais uma curiosidade em termos de variação linguística:
O narrador comenta a reação de Rosa frente a uma atitude de seu pai: “Comoveu-a que o pai a tivesse googlado”. Por aqui, as derivações de Google ainda são mais substantivadas, ainda não observei o uso de nenhum verbo derivado do Google: usamos dá um google; bota/coloca no google, pergunta para o Dr. Google etc.; nossos irmãos portugueses já derivaram um verbo, usando até suas formas nominais.
Mas sempre vale a pena um encontro com os bons autores portugueses: sempre aprendemos mais sobre nós mesmos.