Carla.Parreira 28/10/2023
REID, Louisa. Corações Feridos. São Paulo: Novo Conceito, 2013.
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Resumo em primeira pessoa...
Meu nome é Rebecca e tenho/tinha uma irmã gêmea chamada Hephzibah. Somos filhas de um pai religioso bem fanático que é o pastor Roderick. Ele nunca permitiu que fôssemos à escola, lêssemos livros ou tivéssemos qualquer contato com o mundo externo. Nossas roupas sempre foram os restos das doações feitas à igreja. Crescemos alheias as mudanças que surgem na fase da adolescência, bem como dos cuidados que deveríamos ter com o corpo. Nossa mãe nada fazia para nos ajudar, nem mesmo quando éramos marcadas pela crueldade de um pai violento e bêbado. Eles compartilhavam de uma definição particular do que era o bem e o mal. Na igreja, nosso pai era um homem de Deus; na cidade, ele era um modelo de virtude. E perante todos os religiosos eu era vista como o mal em pessoa, só porque fora ?marcada?. Foi o que aprendi sobre mim mesma assim que eu tive idade suficiente para entender porque eu era diferente fisicamente da minha irmã gêmea. Por diversas vezes, enquanto meu pai fazia suas pregações, eu ficava observando aquelas pessoas que se vestiam com roupas normais, que sorriam e angariavam dinheiro para a caridade. Um monte de malucos que ficavam de joelhos para rezar, mas que, tão logo estivessem seguros atrás de portas fechadas, tiravam as máscaras e deixavam o veneno irromper. Minha irmã Hephzibah sempre foi a mais bonita e decidida. Depois de ameaçar nossa mãe para ela convencer nosso pai sobre a importância dos estudos, finalmente conseguimos ingressar no segundo grau. Minha irmã logo foi se enturmando, fazendo amizades e arranjando um namorado, o Craig. Eu já era mais quietinha: estar na biblioteca da escola era o que eu mais gostava e, se pudesse, leria todos os livros que estavam nas prateleiras. Pois é, essa sou eu, retraída, tímida e cautelosa tanto no convívio social quanto em casa por ser a mais ofendida e menosprezada, educada numa aura de medo e de opressão criada pelo meu pai e tendo a conivência da minha mãe, sem qualquer tipo de regalia básica como tomar banho quente, usar desodorantes ou absorventes. Eu sou a feia da família porque tenho o meu rosto deformado em virtude de sofrer da Síndrome de Treacher Collins, um problema genético que causa má formação nos ossos da face. Minha irmã era maior. Nasceu primeiro, era mais forte e mais bonita, a gêmea popular. Eu vivi à sombra dela por 16 anos, amante do frio e da escuridão, sempre fazendo o máxio para me esconder. Apesar disso, sempre fui mais atenta, cuidadosa, e sempre procurei ajudar a minha irmã fazendo as suas tarefas escolares, mentindo quando ela saia às escondidas para as festas e para namorar. Muitas vezes fui castigada severamente por proteger e encobrir os feitos dela. E tudo isso não terminou nada bem. As saídas de Hephzibah passaram a ser mais constantes porque, além das festas, o Craig a levava para passear de moto por vários lugares. Ela estava apaixonada, amava Craig e o que mais sonhava era poder fugir para ir morar com ele. Com o tempo ela passou a frequentar a casa dele onde tinha o carinho de Pam, a mãe dele, e tudo era felicidade. O que ela não esperava era que Craig e sua mãe fossem na paróquia para o culto de natal. Esse encontro inesperado deixou nosso pai nervoso e muito desconfiado. Isso custou a Hephzibah um trágico fim e muitas vezes me questionei se tinha culpa ou não pela morte dela. Ficava me perguntando se a morte, em tal caso, era de fato ruim ou se ela finalmente tinha se libertado do inferno que nós duas vivíamos diariamente dentro de casa. Pelo menos ela se libertara desse mundo que eu sempre vi como um mar de perigo, lugar onde eu poderia facilmente me afogar. Por mais que tivéssemos algumas briguinhas, nós nos amávamos, eramos amigas e confidentes. Gostávamos de relembrar os momentos felizes que passamos com a nossa avó quando menores. Ela vinha nos buscar para passear, comprava livros que líamos em sua casa, tomávamos sorvete, passeávamos nas lojas, ganhávamos roupas novas. Era um momento de felicidade única, mas nosso pai a odiava e um dia a proibiu de nos ver. Enfim, tive que continuar a vida mesmo sofrendo pela ausência da minha irmã. Certo dia eu recebi na biblioteca um panfleto sobre um curso de verão para ?estudantes talentosos e superdotados?. Além de ter que pagar pelo curso, ainda teria que passar por cima da proibição paterna. Mas eu estava disposta a isso e comecei a ganhar 10 libras por semana distribuindo folhetos. Enquanto trabalhava, meus pais achavam que eu estava tendo aulas extras de matemática. A mentira teve perna curta e o plano de fazer o curso não deu certo. Acabei sendo descoberta, castigada, ficando sem o dinheiro e, como se não bastasse tanta repreensão, meu pai me proibiu de voltar à escola. Eu ficava o tempo todo dentro de casa, ajudando a minha mãe na cozinha e limpando a paróquia. Depois de alguns dias a senhora Sparks, amiga do meu pai, disse que era melhor eu começar a trabalhar para ajudar nas despesas da casa. Foi então que fui trabalhar na casa de repouso ao lado de casa. Aprendi muitas coisas e conheci pessoas que me viam com outros olhos, mas mesmo assim, ao final de cada dia, voltava para o meu quarto onde me escondia e chorava mantendo viva as dores de tudo o que já vivera. Não conseguia ter a coragem da minha irmã para tentar fugir. Muitas vezes escutava a voz dela me encorajando, mas não me atrevia. Receiosa, eu ficava me perguntando qual seria o meu destino e quando conseguiria a minha liberdade. E eu também me perguntava quantos fanáticos como o meu pai deveriam existir no mundo praticando atitudes cruelmente insanas e ensinando a seus filhos que tudo é pecado e que tudo corrompe. E a reflexão que deixo é justamente essa: uma família pode parecer perfeita aos olhos da sociedade, mas a verdade pode ser totalmente o contrário: abuso psicológico, estupro, pedofilia e violência doméstica. Existem muitas crianças por aí que são criadas por pais severos, cruéis, extremamente religiosos, porém hipócritas - pregam na comunidade atitudes diferentes das que têm em casa. O mundo está cheio de pessoas que escondem uma vida de humilhações, opressões e mals tratos, infelizmente.