Eduardo 10/08/2017
Tão singelo quanto o desabrochar da personagem
Se há livros escritos como A Ostra e o Vento, provavelmente são muito raros. Para discutir a imensidão contida nesse livro seria talvez necessária a mesma quantidade de páginas da obra, mesmo que a história contada no livro talvez não precisasse de tantas páginas como tem. Esse é um dos pontos a se discutir no final, porque soaria vago se começasse por ele.
Esse livro conta a história de Marcela, filha de José, que foi levada pelo pai, ainda criança, para viver em uma ilha. Nessa ilha ela conta também com a companhia do velho Daniel, responsável por grande parte do conhecimento que ela absorve durante sua infância. Com o passar dos anos, presa naquele local, Marcela torna-se parte dele e, como o autor mesmo enfatiza, torna-se a ilha. Tudo é Marcela. A força que a menina exerce sobre a natureza da ilha e sobre seus outros dois habitantes é expressa na maneira como eles a veem e como tudo ao redor se interage com ela: as flores, as árvores, os pássaros, os peixes, a areia, o mar e principalmente o vento. Por mais que tudo possa soar como fantasia, não o é; talvez seja resultado de uma poesia em forma de prosa, ou mesmo o efeito sinestésico afiado com extrema delicadeza que dá à obra essa singularidade. O fato é que tentar entender a vastidão de Marcela é se perder nela, já que o ponto principal do enredo, que se encontra tão dentro dela, se manifesta justamente fora: no vento.
Marcela torna-se uma adolescente e então encaminha-se para se ver como mulher. A Marcela menina sabe interagir e se localizar; a Marcela mulher ainda não. Ela vê seu corpo se transformando e seu desabrochar sexual tomando forma. Sobre tomar forma, há dois significados que se intercalam: a descoberta de seu novo corpo e a descoberta de sua solidão. Criada ali por tanto tempo, não conheceu muitas pessoas, muito menos de sua faixa etária, e esse fator isolador aos poucos a tornou isolante. É quando o vento toma a forma aconchegante de namorado no seu pensamento e no seu coração. E ao vento ela dá um nome: Saulo.
Seus desejos de mulher, seu despertar sexual e sua abertura à essa fase são preenchidos por Saulo, homem que ninguém vê, mas que desperta a ira de seu pai e que existe no seu peito. O autor mostra como, mesmo diante de um isolamento, a menina-mulher sente necessidade de criar seu porto seguro, como qualquer pessoa cria, criou ou criará o seu, independentemente de sexo ou idade. Tudo o que Marcela tem é a ilha, e o que é capaz de preencher toda a ilha, assim como ela também o faz aos olhos do narrador, é o vento. Ele é seu amante e confidente.
Quanto à narração, há muito o que dizer. O narrador é onisciente, mas ao mesmo tempo é Saulo, fruto da imaginação de Marcela. Só é possível identificar a troca de narradores quando ela já está consumada há algumas linhas. A forma que o tempo assume no romance também é uma característica bastante singular: há uma transição entre passado e presente quase imperceptível que também só é possível identificar depois de já transcorridas algumas linhas. Por mais que isso possa parecer confuso à primeira vista, na realidade é parte da essência do livro, que é naturalmente narrado em tempos diferentes.
Talvez o único ponto negativo da história, dentre as dezenas de positivos, seja a repetição exagerada do ambiente e dos detalhes que o compõem. Não que seja necessariamente maçante a repetição do canto dos pássaros, das ondas do mar, do barulho do galho da goiabeira e do cheiro do manjericão, mas a história poderia ter menos dessas repetições sem prejuízo algum ao entendimento, à delicadeza e à emoção, com preservação total da essência poética da obra. Não enxergo tais repetições necessariamente como prolixidade, mas como fator que pode deixar o texto levemente enfadonho em alguns trechos.
Em resumo, A Ostra e o Vento é uma história belíssima, com uma temática incrível, que mostra também o drama de relações conflituosas, do ciúme, do apego às tragédias do passado e ainda tem um leve toque de mistério. A singeleza do desabrochar de Marcela é fielmente representada pela singeleza de sua narração.
Não nos esqueçamos de Roberto, que também é personagem importante na descoberta de Marcela, e nem da ostra, em cujo interior nem o vento consegue entrar, a não ser que se abra para ele. E, como essa é uma obra que abre um leque para inúmeras interpretações e sentimentos, nada é mais alusivo à ela que terminar sua resenha com uma vírgula,