GioMAS 06/06/2023
Tensão e paranoia em doses progressivas.
Dois casais que, apesar do vínculo familiar e da convivência mantida ao longo dos anos, mantêm uma relação pautada em constantes provocações e sentimento mútuo de desprezo, encontram-se em um restaurante para jantar e discutir sobre o comportamento desprezível dos filhos, escancarando, no decorrer da noite, mazelas sociais e pessoais.
Sim, essa poderia ser a resenha do livro.
O leitor não se decepcionaria com o resumo. Em certa medida, os elementos principais da leitura se acomodam nestas quatro linhas. Não obstante, em uma análise mais abrangente, convém dizer que não é um livro pautado apenas nos fatos, acontecimentos narrados.
Veja bem, não se nega que os personagens orbitam ao redor de um único acontecimento central - a conduta dos filhos. Porém, o autor explora essa situação com excelência, elevando a angústia aos mais altos níveis, enquanto revela aspectos obscuros sobre o narrador.
A ambientação do livro não se altera, não há demarcação de passagens de dias, tudo acontece no decorrer de um mesmo jantar. As alterações cronológicas ocorrem nos estritos limites do depoimento do narrador personagem Paul. Vale-se de escrita em primeira pessoa, ora do singular, ora do plural, no pretérito perfeito - o que, por si só, já desperta desconfiança.
Pode parecer confuso, mas é simples: os fatos não têm relevância na obra, por vezes, são exagerados e pouco críveis, dando indícios de distorção da realidade (narrador personagem, né? Não dá pra confiar).
Arrisco-me a dizer que não foi apenas a abordagem do tema central que conquistou o prêmio Booker Prize em 1998. Não. O que ganhou os críticos foi a profundidade da tensão psicológica.
Não há dúvidas, as várias camadas de suspense psicológico conferem à obra o status de "premiada".
A obra explora a sinestesia, despertando os mais diversos sentidos, em meio a um ambiente claustrofóbico. Os aspectos emocionais do livro são gradativos, as coisas pioram aos poucos. O politicamente correto é posto de lado, enquanto surgem versões diferentes de cada uma das quatro pessoas sentadas à mesa.
A sensação é que você, leitor, também está à mesa com Paul, Serge, Claire e Babete, compartilhando de um jantar constrangedor, hostil, em meio a palavras não ditas, segredos, muita pressão, em um restaurante refinado de Amsterdam.
É isso, você não pode simplesmente abandonar o jantar pomposo, não pode se retirar. Deve permanecer até que tudo fique em "pratos limpos". Você, leitor, não pode desligar o Kindle e retomar a leitura em outro momento. Não. É necessário esgotar o depoimento de Paul. É preciso compreender qual o limite entre os fatos, o que é real, e a psicose - sim, tudo parece resultado de uma grande psicose.
Não tratarei disso na "Resenha", mas discorri brevemente sobre as interpretações alternativas no último "histórico de leitura" que registrei, inclusive traçando um paralelo entre esta obra e o livro "Psicose".
Enfim, o livro é muito satisfatório para aqueles capazes de ler nas entrelinhas, questionar as motivações e, até mesmo, a sanidade dos personagens, para os que, como eu, desenvolvem teorias, articulam respostas, buscando em cada um dos diálogos os indícios para confirmar ou refutar as suas deduções.