Euflauzino 27/08/2014A verdade submersa sob os porões de um país
Ainda me encontro sob o impacto absurdo deste livro, que custou a me ganhar. Linguajar rebuscado, quase machadiano e isso não é por acaso. Então, vou até a orelha do livro e noto que o autor nasceu em 1980 – novo demais. Num primeiro momento não consigo associá-lo a uma obra tão contundente, então paro e o reverencio – o livro é um espetáculo!
A construção da identidade de um país nem sempre é forjada por ideais nobres e fraternos. Há conchavos, embustes e negociatas. Esse é o estilo que bem conhecemos e que Machado de Assis tão bem declama na epígrafe do livro:
“A verdade sai do poço sem indagar quem se acha à borda.”
A contracapa de A base do iceberg (Schoba, 324 páginas) já vem me emocionando, palavras que como uma picareta vão abrindo minha cabeça, fazendo-me enxergar o mundo:
“É estranho abrir os olhos após o nada. A existência, que havia sido suspensa, é acionada pela claridade, e então emergimos do grande vazio em que estávamos mergulhados. Acordar é um ato desesperador…”
Pedro é um jornalista, um idealista que todos os dias acorda e vai se arrastando para seu trabalho. Lá sempre se depara com seus companheiros e aguarda a chegada de seu patrão, o velho Iago, para as malfadadas reuniões em que será novamente humilhado:
“… Seu Iago e a sua chegada pomposa. Ele, indiferente. Ela, perturbadora. A partir de então, minha sensação de incômodo passava a alcançar níveis opressores. Fez-se um silêncio amplo que abrigava silêncios diferentes entre si, uns por reverência, outros por adulação, o meu por constrangimento.”
Só que Pedro é o retrato da inércia, muitas vezes parecido comigo e essa identificação doeu em mim:
“… eu queria me ver livre do meu trabalho e de todas aquelas sensações que ele provocava, mas entre o querer e o fazer o que se queria havia grande distância que eu não cogitava percorrer, porquanto era típico da minha personalidade esperar, com irritante omissão, que tudo se acertasse por si só.”
Insuflado por seu colega Miguel, a abandonar o emprego, toma coragem e se demite. Miguel tem planos para Pedro, e estes planos incluem a confecção de uma biografia. Sabedor de que Pedro está em crise no casamento e agora sem emprego graças a uma forcinha sua, Miguel o provoca a escrever sobre a vida de Donatelo Veras, líder da Revolução Fraterna. O final de um casamento é sempre doloroso, cada gesto fere, machuca, destempera e Catarina, mulher de Pedro, acaba por desenvolver pensamentos que reforçam a angústia do casal:
“… Em grande parte do tempo, era dominada por uma irritação, sem qualquer motivo aparente… me sentia como se fosse agredida pela sua presença. Aqueles defeitos que são tão comuns e insignificantes ganhavam dimensão exagerada. Era atordoante ouvir o som que ele produzia quando mastigava os alimentos…”
Pedro é um amante da história de seu país, que tem como ícone maior, Donatelo Veras. Um país fictício, mas que poderia muito bem ser o nosso, domina juntamente com o fracasso de seu casamento cada parte de seu pensamento. E as palavras ditas pelo líder vão sobrepujando tudo:
“… o povo civilizado é aquele que, para o seu próprio bem, tem a coragem de desconstruir frases feitas. Os fins não justificam os meios”.
É por frases como essa que Pedro venera Donatelo e por tantas outras que recheiam o livro:
“… Certa vez, afirmou que a única diferença entre tratar um animal e um ser humano era a maior paciência que se deveria ter com a propensão de um deles de sempre reclamar da vida.”
Então Pedro mergulha fundo na execução deste trabalho. No início o faz com tanto prazer que acaba superando as expectativas do velhaco e sedutor Miguel.
Porém, Pedro tem um último pedido. Quer saber o que aconteceu ao líder após deixar o poder, acha que sem isso a história de seu livro não estará completa. E é a partir daí que ele toma conhecimento de algo que o fará alterar completamente sua opinião sobre todos os valores sob os quais sua vida fora edificada.
Nesse momento a história fictícia se confunde com a história real. Logo me veio á mente os absurdos crimes cometidos por Conde D’Eu, sob as ordens do patrono do Exército Duque de Caxias. Segundo Julio José Chiavenatto, em seu livro “Genocídio americano”, no dia 16 de agosto de 1869 ocorreu a Batalha de Acosta Ñu, ou Ñu Guazu (Diário do Exército). Nesse local havia um capinzal muito grande onde estavam 3.500 crianças paraguaias, centenas de mães, e 500 veteranos paraguaios. Mais de 20.000 soldados brasileiros cercavam o local, sob o comando do Conde d’Eu, que ordenou aos soldados atearem fogo no mato para queimar vivos as crianças, mulheres e soldados paraguaios. Segundo relatos do tenente Alfredo d’Escragnolle Taunay, “muitos soldados brasileiros choravam e vomitavam ao ter que cometer o bárbaro crime”.
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