Abduzindolivros 08/09/2023
Já tenho uma personagem literária feminina favorita: Ana Terra, hoje e para sempre!
Confesso que achava que não sentiria muito prazer nessa leitura, mas já se tornou um dos meus livros favoritos DA VIDA! Como sou apaixonada por romances de formação, acompanhar a trajetória da família Terra-Cambará junto com a formação do estado do Rio Grande do Sul foi uma experiência incrível, que eu recomendo de olhos fechados para todo mundo.
Erico Veríssimo tem um jeito de contar histórias que é uma lindeza! Transmite ideias profundas fazendo-me pensar sem que o próprio emita juízos de valor sobre as ações dos personagens, e com uma linguagem tão simples que pode ser apreciada e entendida por qualquer pessoa. Tem que ser um escritor muito bom para conseguir isso. Fiquei presa do início ao fim, saboreando, me emocionando, torcendo para que o livro durasse mais...
O começo do romance mostra os personagens mais atuais da família Terra-Cambará sitiados na sua residência em Santa Fé, o Sobrado. Durante três dias, seus moradores são acossados pelos federalistas (apoiadores da monarquia, parlamentaristas etc.), e essa parte é fragmentada em vários capítulos, intercalados com narrativas do passado. Como essa família chegou nesse casarão e está nessa situação? É isso que vamos entender.
Mesclando ficção com fatos históricos, Veríssimo, após nos apresentar o drama da família no cerco ao Sobrado (1895), nos leva para um passado ainda mais distante (1745) para contar a história de Pedro Missioneiro, um indígena nascido nas missões jesuítas cuja história se cruzará com a de Ana Terra, que posteriormente se estabelecerá em Santa Fé. À sua família, anos depois, se juntará o Cap. Rodrigo Cambará, por meio do casamento com Bibiana Terra (neta de Ana), e entre nascimentos, mortes, tempo e vento, chegaremos ao desfecho do cerco no final do livro.
Apesar da maior parte da jornada ser contada sob o ponto de vista de homens que acompanharam a história dessa família (pe. Alonzo, pe. Lara, dr. Winter), Veríssimo focou a atenção nas mulheres, em como elas sofriam e enxergavam a sucessão de guerras que sempre levavam seus maridos e filhos, e alguns nunca mais retornavam. Ana Terra, Bibiana, Luzia, Maria Valéria, são nomes que se destacam; mulheres com personalidades distintas, todas padecendo numa época muito machista e violenta, tendo que se preservar de alguma maneira.
De guerra em guerra, o tempo vai passando e arrastando consigo a brutalidade dos homens através das gerações. Era estarrecedor ver como isso trazia muito sofrimento para esses homens ? instabilidade emocional, depressão, mortes violentas; ou eles sofriam calados, ou explodiam e imputavam sofrimentos maiores aos mais fracos, tudo em nome de preservar sua masculinidade: às mulheres, restavam estupros, obediência cega, lutos prolongados e repetidos, traições, maledicência, fome... Os papéis de gênero eram bem definidos e não se admitia que se escapasse disso: aos homens restava serem ?machos? e não fugir de uma boa briga; às mulheres, cabiam o papel de serem submissas e esperarem seus homens em casa, ou serem chinocas que serviam para uso desses homens. Um estado que foi construído sobre o sangue e sofrimento de muita gente.
Girando em torno desses ciclos, com seus personagens repetindo seus questionamentos sobre a inutilidade de tantas guerras (e de viver, trabalhar, persistir...), outras questões vêm à tona. A opressão de algumas famílias sobre outras, e aqui estamos representados pela família Amaral que detinha o poder econômico e político em Santa Fé, inimigos dos Terra-Cambará conforme estes ascendiam politicamente. Com o respaldo do governo, essas famílias poderiam tomar as terras que quisessem e acumular sesmarias, mandando e desmandando, enquanto os mais pobres não tinham apoio nenhum e podiam, de uma hora para outra, perder tudo, segundo a decisão arbitrária desses coronéis.
Isso também gerava uma hierarquia de oprimidos, e na base estavam os indígenas e os negros, que não eram considerados gente muitas vezes nem dentre outros oprimidos. Tem uma cena impactante na qual Licurgo Cambará, neto de Bibiana Terra, promove uma festa para dar a carta de alforria aos seus escravos; o tempo todo exalta a importância desse ato bravo, porém, por dentro, os pensamentos que dirige aos negros são preconceituosos e humilhantes.
O tempo passava e nada mudava. O vento anunciava as mortes, e carregava a teimosia dos mortos para a próxima geração de vivos. E assim, nada mudava ? apesar do mundo estar em constante progresso.
Minha parte favorita foi, sem dúvida, a história da Ana Terra. Me emocionei e me apaixonei por essa personagem, e pela força do ódio ao qual ela se agarrou para viver, após protagonizar um ato de extrema coragem, sagacidade e sacrifício por amor à sua família. Foi de arrepiar; quem leu, sabe do que estou falando. Quem ainda não leu, se prepare. É claro que Ana Terra é uma personagem fictícia, mas é impossível deixar de imaginar quantas mulheres tiveram que suportar aquele tipo de coisa, desprotegidas naqueles pampas sem lei...
É um livro lindíssimo, emocionante, vale a leitura e a releitura! Recomendo fortemente.