David Ariru 31/03/2016
Escrever é mais que talento
Um livro que demonstra, acima de tudo, um trabalho rigoroso. Tanto a estrutura do romance quanto seu conteúdo deixam claro que a qualidade do livro não se deu por acaso; ao contrário, é fruto de horas de pesquisa, escrita, correção, análise e dedicação. Para apontar algumas das características do livro que evidenciam esse engajamento, resolvi separá-las em duas categorias: características estruturais e características de conteúdo. Ocupo-me primeiramente das estruturais.
A narração do romance inicia no futuro. Damião, o personagem central, já velho, encontra-se a caminho de conhecer seu bisneto que está prestes a nascer. Porém, logo após o primeiro capítulo, somos remetidos ao passado; à infância de Damião. Alguns capítulos depois, a narrativa é retomada no tempo presente, onde Damião está a caminho da casa da neta que está prestes a dar à luz. Isso dá início à estrutura central do livro; uma anisocronia, onde a narrativa de um texto não segue uma ordem linear (isocronia), mas tem fatos futuros antecipados (prolepse) e/ou fatos passados revelados (analepse). Josué Montello utiliza esses recursos de forma primorosa, recuando, principalmente através das lembranças de Damião, aos fatos ocorridos no passado (analepse) e voltando, brevemente, ao tempo presente para falar de alguma reflexão atual de Damião ou de sua caminhada até o bisneto. Dessa forma, toda a história do livro pode ser contada em apenas uma noite, onde Damião vai caminhando e tendo recordações do passado. Este é um dos aspectos que faz deste livro, com mais de seiscentas páginas, uma leitura fluida e atraente.
Outro aspecto do romance que dá efeito similar, é o fato de suas centenas de páginas serem divididas em pequenos capítulos com, em média, 10 páginas. Um número que, para um leitor mediano, pode ser considerado passível de ser lido de uma só sentada; de uma só vez. Deparamo-nos, assim, com o efeito da unidade de impressão mencionado por Edgar Allan Poe em: A Filosofia da Composição. Edgar diz que ...o conjunto se vê privado, por sua extrema extensão, do vastamente importante elemento artístico, a totalidade, ou unidade de efeito.. Dividir o romance em pequenos capítulos se apresenta, então, como uma forma de driblar essa falha de impacto e unidade do texto, pois, no Tambores de São Luís, cada capítulo é dotado de Início, meio e fim, o que lhes confere uma unidade de expressão e impressão.
Há, ainda, um último elemento estrutural que ajuda a fazer com que muitos dos leitores deste livro não se sintam enfastiados. Trata-se de aplicar a anisocronia não só na estrutura central do texto, como já analisamos anteriormente, mas dentro de cada capítulo do romance. Josué reorganiza a estrutura básica de uma narrativa: início, meio e fim (1,2,3). Mas não para algo até bastante utilizado atualmente; digo, colocando o fim primeiro, voltar e contar o início da estória e depois, através do meio, elucidar o desfecho da narrativa (3,1,2,3). O que ele faz é ir além desse método já um tanto desgastado; colocando o meio primeiro, apresentando a estória de um ponto intermediário no futuro em relação ao último capítulo(prolepse), voltar ao passado e explicar como isso ocorreu(analepse) e, chegando ao ponto intermediário novamente, continuar a narração para um final ainda desconhecido de forma linear, a chamada isocronia. Desta forma, temos 3,1,2,3,4,5. Aproveita-se, assim, as principais vantagens dos dois tipos de estrutura temporal no mesmo capítulo: a anisocronia desperta o desejo do leitor por saber como um fato apresentado foi ocorrer (saber a causa do efeito) e a isocronia, o desejo de saber o que vai ocorrer a partir do que está sendo narrado (saber o efeito a partir da causa). É por isso que a narrativa apresenta mudanças bruscas, porém, que se mostram coerentes no decorrer do romance.
A ordenação especial que Josué dá ao livro só parece ser suprimida quando o conteúdo do capítulo, por si só, já é capaz de fazer a estória transcorrer de modo atraente e ritmado. Como, por exemplo, no capítulo onde Ana Rosa Ribeiro é julgada ou no capítulo após Policarpo tirar Damião da cadeia. Nesses casos, o conteúdo do capitulo é tão intenso e envolvente, que não é necessária uma estrutura especial para lê-los com entusiasmo.
Partindo para o conteúdo do livro, a riqueza e refinamento da obra continua em alto patamar. O romance é cheio de detalhes bem apresentados e possui uma quantidade imensa de personagens, o que cria de modo satisfatório o fundo histórico da obra. Em Os Tambores de São Luís, tanto os negros quanto os brancos são apresentados em todas as suas diversidades, não se limitando a arquétipos ou estereótipos. O autor se preocupou em transpassar no livro a época, o local e as pessoas de modo complexo. E, para mostrar negros e brancos em situações que aconteceram ou que, ao menos, eram possíveis na época, criou pelo menos um personagem para representa-las no romance. Por exemplo, para mostrar que haviam senhores desumanos com seus escravos, criou Ana Rosa (Que na verdade é baseada em um caso real- A baronesa de Grajaú); para mostrar que haviam negros que se davam bem com seus senhores, criou o Barão e outros; para os insubordinados, Julião; para os que lutavam contra o sistema, Genoveva, Para os mulatos, que viviam em situação delicada, Policarpo; para senhores que gostavam de seus escravos, Youle e outros; para brancos a favor da abolição, Doutor Celso; para negros forros e excepcionais que conseguiram subir na sociedade mesmo sofrendo constantemente por causa da cor, Damião. Assim por diante, a obra mostra, para cada situação, ou possibilidade de situação da época, personagens que vão desde brancos a favor da abolição, a um negro senhor de escravos, o que ajuda a compor um quadro mais crítico, complexo, realista e menos romantizado desse período. Para se afastar ainda mais do romantismo e apresentar um retrato mais cru da realidade, temos um desfecho no livro que deixa claro que, mesmo com a ascensão social do negro, merecida e conseguida com muito esforço, não se trata de um: felizes para sempre.
Quanto ao estilo do autor, Josué é simples e eficiente. Evita sentenças longas e complexas em favor de frases curtas e objetivas e, quando a quantidade de detalhes na oração exige, usa de muitas vírgulas para dividir bem a informação a ser passada ao leitor. Por exemplo: Na véspera, ao subir com a sua primeira carga de água, Damião deu com o Sapaúba à sua espera, junto do tanque, segurando pela rédea um jumento novo, com as cangalhas no lugar da sela. . Entretanto, isso não é motivo para dizer que seu estilo é simplório e bruto, pelo contrário, devemos ter em mente o que respondeu Nelson rodrigues ao ser subjugado por um crítico que disse que os diálogos de seus textos eram pobres; simples demais: Só eu sei o trabalho que me dá empobrecer os meus diálogos. A clareza e objetividade da escrita é algo trabalhoso e difícil de se alcançar; necessita, ao meu ver, principalmente de treino e uma boa ordenação de ideias.
Por fim, digo que há muito mais para analisarmos nessa obra fantástica. Porém, por alguns motivos, o que inclui minha falta de conhecimento, atenho-me apenas a esses aspectos específicos do romance, pois foram os que mais me chamaram a atenção, obrigando-me a olha-los mais de perto. Espero ter instigado alguns a atentarem a esses detalhes e a outros também.
Ariru