Euflauzino 07/08/2018O gângster que não queria sê-loComo alguém com a rígida formação irlandesa, filho de pai capitão de polícia, irmãos promotor de justiça e policial, pode tornar-se um mafioso, um gângster? Resposta: família desestruturada! E não é essa uma das maiores mazelas da sociedade, inclusive nos dias atuais?
Ao final do primeiro livro da série Coughlin – “Naquele dia” – constatamos todo sofrimento pelo qual a família Coughlin atravessa os anos 20. A Lei Seca continua, estamos no final dos anos 20, e o terreno é fértil para que o contrabando de bebidas floresça e faça de seus organizadores homens ricos e poderosos. A máfia e seus códigos é quem comanda a maior parte do comércio ilegal e quem não acata sua decisão paga com a vida.
E é neste contexto que Joe Coughlin, um jovem fora da lei, deixará de ser um simples bandido, decepcionado pelos dissabores familiares, para se tornar uma lenda. Não é necessário ler o livro anterior, aqui temos a trajetória do filho caçula do Capitão de Polícia de Boston, Thomas Coughlin. Trata-se de Os filhos da noite (Companhia das Letras, 480 páginas) de Dennis Lehane.
Não sou expert em matéria de livros sobre a máfia, li bastante deles, fictícios ou não, e me interesso pelo assunto como um bom curioso, assim como me declaro apaixonado pelo cangaço. Então o que vou dizer é pessoal: “ninguém escreve um bom diálogo entre mafiosos como Lehane (partindo do princípio de que ainda não me familiarizei com a escrita de Mário Puzo)”. Lehane já inicia o livro com um parágrafo de tirar o fôlego:
"Alguns anos mais tarde, a bordo de um rebocador no golfo do México, os pés de Joe Coughlin foram mergulhados em uma banheira de cimento. Doze atiradores esperavam a embarcação se distanciar o suficiente da costa para jogá-lo no mar enquanto ele escutava o resfolegar do motor e via a água revirada embranquecer na popa. Ocorreu-lhe então que quase todas as coisas dignas de nota que haviam acontecido em sua vida — fossem boas ou ruins — tinham sido postas em movimento naquela manhã em que seu caminho cruzara pela primeira vez o de Emma Gould."
Atraindo nossa atenção de forma primorosa, queremos saber o que acontecerá na vida deste futuro cadáver. Dá para percebermos que Emma Gould tornar-se-á peça importante na formação do caráter de nosso protagonista. Eles se conhecem em um assalto. Ela é a garçonete do local onde Joe e seus comparsas, os irmãos Dion e Paolo Bartolo, receberam a dica de que seria fácil subtrair.
"Ela chegou bem perto da pistola dele e disse: “O que o cavalheiro vai querer hoje para acompanhar seu assalto?”.
(...)
“Qual é o seu nome?”
“Emma Gould”, respondeu ela. “E o seu?”
“Procurado.”
“Por todas as moças ou só pela lei?”"
É gasolina jogada pra apagar fogueira, romance incendiário na certa. O grande problema é que Emma não é bem uma pessoa confiável, aliás ela é amante do big boss local, Albert White. Esconde segredos de uma vida dissoluta para os quais pai de Joe tenta alertar.
"(...) “O pai dela costumava ser cafetão, e o tio matou pelo menos dois homens até onde nós sabemos. Mas, Joseph, eu poderia ignorar isso tudo se ela não fosse tão...”
“Tão o quê?”
“Tão morta por dentro.” Seu pai tornou a consultar o relógio e mal conseguiu disfarçar o tremor de um bocejo. “É tarde.”
“Ela não é morta por dentro”, disse Joe. “Tem algo adormecido dentro dela, só isso.”
“Adormecido?”, falou seu pai enquanto Emma voltava para a mesa com seus casacos. “Filho, isso nunca mais vai acordar.”"
Seguir os conselhos de seu pai não era o forte de Joe, afinal de contas nada do que vinha dele ou dos seus poderia ser levado em conta.
Quando uma mulher certa vez perguntou a Joe como ele podia vir de um lar tão esplêndido e de uma família tão boa e mesmo assim ter virado gângster, sua resposta teve duas partes: (a) ele não era gângster, era um fora da lei; (b) vinha de uma casa esplêndida, não de um lar esplêndido.
Em novo assalto à mão armada, Joe é traído e sentenciado a vários anos de prisão. Mais uma vez recebe ajuda de seu pai na redução de sua pena e alguns novos conselhos de como sobreviver dentro do inferno:
"(...) “Na sua primeira semana lá dentro, alguém provavelmente vai ameaçar você. Ou na segunda, no máximo. Você vai ver o que ele quer nos olhos, quer ele diga ou não.”
Joe sentiu a boca muito seca.
“Então alguma outra pessoa, um cara bacana de verdade, vai defender você no pátio ou no refeitório. E, depois de fazer o outro sujeito recuar, vai lhe oferecer proteção pelo resto de sua pena. Escute o que vou dizer, Joe: é esse cara que você precisa machucar. Machucar tanto que ele nunca mais consiga ficar forte o suficiente para machucar você. Mire no cotovelo ou no joelho. Ou nos dois.”
Os batimentos cardíacos de Joe chegaram a uma artéria em seu pescoço. “E aí eles vão me deixar em paz?”
Seu pai lhe deu um sorriso contraído e começou a menear a cabeça, mas o sorriso desapareceu e o meneio de cabeça foi junto. “Não, não vão.”
“Então o que vai fazer eles pararem?”
Seu pai desviou os olhos por um instante, com a mandíbula contraída. Quando tornou a encarar o filho, tinha os olhos secos. “Nada.”"
Joe consegue sobreviver dentro da prisão vendendo sua alma a Maso Pescatore, um dos capo da máfia, que promete inseri-lo no universo de sua corporação criminosa. Ao se ver livre novamente, Joe procura Pescatore que o coloca como intermediário no contrabando de bebidas, condenando seu pai a prestar alguns favores ilícitos. E assim Joe vai galgando posições dentro da organização.
A violência torna-se parte da vida de Joe, uma segunda pele, e com a ajuda de seu braço direito Dion Bartolo vai se transformando no único contrabandista da região, até que alguém acima de Joe percebe que é preciso cortar as asas deste sonhador. É aí que os que estão a sua volta começam a sofrer.
site:
Leia mais em: http://www.lerparadivertir.com/2018/08/os-filhos-da-noite-vol-02-serie.html