Lucas 01/07/2020
Alguns trechos
Trechos que destaco:
“(...) embora eu ainda me caracterize por receber esses choques repentinos [momentos de profunda percepção existencial], eles agora são sempre bem-vindos; passada a primeira surpresa, sempre sinto instantaneamente que eles são bastante valiosos. E assim, chego à conclusão de que o que faz de mim uma escritora é a capacidade de receber choques. Arrisco-me até a afirmar que, no meu caso, o choque é imediatamente seguido do desejo de explicá-lo. Sinto que recebi um golpe; mas não é, como eu pensava quando criança, simplesmente um golpe de um inimigo escondido por trás do algodão cru da vida diária; é ou vai tornar-se uma revelação de alguma espécie; é um sinal de que há alguma coisa real por trás das aparências; eu a torno real colocando-a em palavras. É somente colocando-a em palavras que eu a totalizo; essa totalidade significa que ela perdeu o poder de me machucar; dá-me um grande prazer, talvez porque ao fazê-lo afasto a dor, juntando as partes separadas. Talvez esse seja o maior prazer que eu conheça. É o êxtase que sinto quando, ao escrever, tenho a impressão de estar descobrindo o que faz parte do quê; fazer uma cena ficar boa; fazer um personagem tomar forma. Disso, extraio o que eu chamaria de uma filosofia; de qualquer modo, é uma ideia fixa minha; que por trás do algodão cru está escondido um desenho; que nós estamos – isto é, todos os seres humanos estão - ligados a isso; que o mundo é uma obra de arte; que nós somos parte de uma obra de arte. Hamlet ou um quarteto de Beethoven é a verdade a respeito dessa imensidão que chamamos mundo. Mas não existe Shakespeare, não existe Beethoven; e nem certamente existe Deus; nós somos as palavras; nós somos a música; nós somos a própria coisa. E percebo isso quando levo um choque.
“Essa minha intuição - é tão instintiva que parece dada a mim, e não produzida por mim – certamente passou a moldar a minha vida desde que vi a flor no canteiro junto à porta da frente, em St. Ives. Se eu estivesse pintando a mim mesma, teria de encontrar alguma coisa – uma medida, eu diria – que representasse essa ideia. Ela prova que a nossa vida não se limita ao nosso corpo e ao que dizemos e fazemos; vivemos o tempo todo em relação a determinadas medidas ou ideias de fundo. A minha é de que existe um desenho por trás do algodão cru. E essa concepção me afeta todos os dias. Provo isso agora, escrevendo a manhã inteira, quando poderia estar passeando, fazendo compras, ou aprendendo a fazer alguma coisa que será útil se a guerra vier. Sinto que, escrevendo, estou fazendo algo muito mais necessário do que qualquer outra coisa.” (pág. 84-85)
“Mas, qualquer que seja a razão, acho que criar cenas é o meu jeito natural de apreender o passado. Uma cena sempre vem à tona; ordenada; representativa. Isso confirma a minha ideia instintiva – ela é irracional; não admite discussão - de que somos recipientes vedados flutuando naquilo que se convencionou chamar realidade; em determinados momentos, sem nenhuma razão, sem nenhum esforço, o dispositivo de vedação se rompe; a realidade invade o recipiente; isso é uma cena – pois elas não teriam resistido por tantos anos se não fossem feitas de algo permanente; isso é uma prova de sua ‘realidade’.” (pág. 164)
“Quando afirmo que, embora nada que se possa chamar de aventura me tenha acontecido desde a última vez que ocupei essa importante e incômoda cadeira, eu ainda pareço para mim própria um indivíduo com uma ânsia enorme, inesgotável - um vulcão em eterna erupção - será que quando digo isso, falo apenas por mim mesma? Será que estou sozinha no meu egocentrismo, quando digo que nunca a luz pálida da aurora entra filtrada pelas persianas do número 52 da Tavistock Square, sem que eu abra os olhos e exclame: ‘Puxa! Aqui estou eu novamente!’ - nem sempre com prazer, muitas vezes com dor; às vezes com um espasmo de intensa aversão, mas sempre, sempre com interesse?” (pág. 234)