Gustota 12/07/2014Quando você sabe que vai morrer no ponto final.Sempre me perguntei de-colé-que-é deste livro, o porquê dele ser tão polêmico a ponto de terem invocado uma fatwa para o autor, ou seja, um mandato de morte não para assassinos de aluguel, mas uma guerra santa que todo muçulmano temente a Deus deve cumprir. É lendo suas páginas que entendi mais ou menos, ainda que não justifique o injustificável.
O livro é bem complexo para nós ocidentais do extremo-ocidente. É um livro com linguagem pop que muçulmanos, indianos e ingleses irão compreender melhor (se for todos juntos, principalmente), pois as referências à cultura pop dos anos 80, das tradições dos dois países e da relação daqueles que nascem indianos em terras europeias são coisas bem exploradas pelo autor. Trata-se de uma obra de realismo fantástico onde dois atores indianos de origem muçulmana que caem de um avião em plena Inglaterra, sendo ambos bem diferentes na origem e no comportamento; um ator de Bollywood especializado em representar divindades e o outro um ator de teatro e dublador, super puxa-saco da cultura inglesa. O acidente os transforma num anjo e num demônio respectivamente.
Mas essa é só uma parte da história, da metáfora. Os personagem que se tornou santo acaba tendo uma estranha ligação nos sonhos com o Arcanjo Gabriel, aquele que divide seu nome, e são esses sonhos os sonhos de blasfêmia. Num deles volta para uma Meca pré-islâmica, outrora uma cidade politeísta dominada por um mercador e sua misteriosa e poderosa esposa, Hind, cultora de uma divindade feminina Una e Tripla. A chegada de Maomé (chamado no livro de Mahound, um nome blasfemo) confronta os poderes locais, obrigando-os a tentar o escárnio do poeta satírico Baal. É num dos confrontos entre o profeta e seus tentadores donos do poder que são proferidos os chamados "Versos Satânicos", onde Maomé permite que Alá divida seu culto com a divindade feminina. Essa passagem é apócrifa no Alcorão, mas o autor, Salman Rushdie, explora ela sem dó nem piedade, usando de uma linguagem bem atual e coloquial para tratar dessa passagem.
Outro sonho do Arcanjo Gabriel nos leva a um tal de "Imã", sujeito profético, exilado, buscando usar as ondas de rádio para confrontar os imperadores do Irã, principalmente a imperatriz, onde há uma clara analogia entre esse momento e o de Maomé em Meca. E claramente a personagem satirizada é o Aiatolá Khomeini, figura emblemática. política e religiosa fundamentalista do Irã.
Ou seja, não tinha como o cara escapar ileso desses ataques. É engraçado observar como nossa mídia consegue subverter sem dó nossos mitos religiosos e fundadores, enquanto alguns fundamentalistas tentam sem sucesso controlar e manipular tais representações. Não deixa então de ser estranho para nós que o Salman Rushdie tenha virado um demônio para a cultura islâmica mais fundamentalista. Mas não posso deixar de penar que ele quis escrever aquilo, independente de saber que seu destino seria algo muito próximo ao que realmente lhe ocorreu, pois alguém tinha que fazê-lo, se não pela escrita realidade, pela fina ironia da ficção.
Um dos trechos mais reveladores de como o escritor sabia seu destino é no diálogo final de Baal com Maomé, este primeiro já derrotado:
- Escritores e putas, são esses que você não consegue perdoar.
Enquanto Maomé responde:
- Escritores e putas, não vejo a diferença.