Andreia Santana 15/10/2011
“Para nascer de novo, é preciso morrer primeiro”
Gibreel Farishta e Saladim Chamcha despencaram 30 mil pés sobre Londres. A metáfora usada por Salman Rushdie para descrever o estranhamento desses dois imigrantes indianos na Londres da era Tatcher pode servir como alegoria para qualquer situação em que o ser humano se sinta inadequado, estranho, em eterna adaptação. Os dois homens, hindus-muçulmanos (esse é o livro que decretou a sentença de morte de Salman Rushdie diante dos fundamentalistas islâmicos) sobrevivem à explosão de um avião atacado por terroristas. Durante a queda das nuvens, sofrem o que o autor chama de metamorfose.
Gibreel, o arcanjo, é um ator de sucesso, faz filmes teológicos e já interpretou um sem número de deuses do intrincado panteão hindu. Saladim, também ator, é um homem atormentado por demônios interiores, complexo de Édipo mal resolvido, relação tensa com o pai, frustração na carreira, inadequação com a própria cor da pele, escura. Gibreel, ex-menino pobre das ruas de Bombaim, é a estrela histriônica e cheia de caprichos, mas que tem tanta luz dentro de si que recebe o perdão para todos os seus pecados antes mesmo de cometê-los. Essa intensidade o cega. Ofuscado pelo próprio ego, consumido pela paixão por si mesmo, pela humanidade, por Alleluia Cone, a alpinista que conquistou o Everest, embarca nos próprios devaneios, julga-se o mensageiro de Deus, o braço esquerdo da ira divina, o Arcanjo Gabriel encarnado. Perde o juízo e começa a viver a fantasia de sua infância, quando a mãe o chamava de “farishta” (anjo).
Saladim, o menino rico de Bombaim, filho de um próspero fabricante de fertilizantes, rejeita a casa paterna, a cultura de seus pais, do país de origem. Ele quer ser inglês, falar, vestir-se, ter a cor dos britânicos. Também vive dentro de um sonho e tarde demais descobre que a velha Inglaterra das novelas de cavalaria não existe para além do cancioneiro dos poetas.
Contar todas as mirabolantes reviravoltas do destino desses dois homens – um transmutado em anjo, o outro em demônio, é estragar o prazer, o susto, a confusão, a necessidade de digerir cada linha de Os Versos Satânicos.
Basta dizer que é uma leitura fundamental para entender o eterno conflito oriente-ocidente. Para ter o panorama completo que Rushdie deseja traçar não somente da Índia, mas de como a cultura molda o ser humano, na mesma medida em que é consolidada por ele, é preciso ir mais fundo no universo rushdiano e ler também O chão que ela pisa. Os dois livros se completam, embora tragam personagens e situações diversas. A sensação ao concluir as duas leituras é de ignorância completa.
Senti-me incapaz, logo de cara, de dizer se entendi o recado. Fiquei confusa, sem saber se Rushdie queria mesmo dar um recado ou se os dois livros não são apenas a sua catarse, a sua forma de exorcizar os demônios da herança anglo-indiana. Se tudo não passa da narrativa de um homem em conflito entre oriente-ocidente, mas que tem senso critico suficiente para olhar os dois mundos sem fazer concessões, sem piedade.
É o melhor e o pior dos dois universos e é tão próximo da vida de qualquer pessoa, independente de ter nascido em Bombaim, Londres, ou em Salvador, que é difícil não traçar paralelos. Não vou dizer como a história acaba ou o que ela revela, porque digestão é algo muito particular, no ritmo próprio de cada um. Duas pessoas não digerem a mesma informação de maneira semelhante. Limito-me a dizer que o ciúme é a ruína do celestial Gibreel e o amor pode redimir o satânico Saladim.
No fim, anjos parecem criaturas atormentadas e demônios, demasiadamente humanos.
UM TRECHO DO LIVRO:
“A cidade moderna é o locus classicos de realidades incompatíveis. Vidas que não têm nada a ver umas com as outras se misturam, sentadas lado a lado no ônibus. Nas listras do chão do cruzamento, um universo é atingido por um instante, piscando como um coelho, pelos faróis de um veículo motorizado dentro do qual se encontra um continuo inteiramente estranho e contraditório. E contanto que não vá além disso, que passem na noite, que se acotovelem em estações de metrô, tirando os chapéus em algum corredor de hotel, não é tão grave…”
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P.S.: Só um lembrete aos marinheiros de primeira viagem na área de literatura. Uma resenha é uma leitura comentada, uma análise com base na obra lida e em outras obras do autor resenhado - além de outras leituras do resenhista. Resenha é texto jornalístico, tem de ser informativo e analítico ao mesmo tempo. Quem não quer saber detalhes da história, jamais deve ler uma resenha e sim um resumo, porque o resumo é só uma apresentação do tema da obra, sem aprofundamento crítico e sem análise.